quinta-feira, outubro 02, 2008

O Significado Sócio-histórico dos Direitos Humanos e o Serviço Social. Comunicação Apresentada por Lúcia Barroco na FIITS 2008 (Bahia) Brasil

“O significado sócio-histórico dos Direitos Humanos e o Serviço Social”
Maria Lucia Silva Barroco [1]

Palestra apresentada na mesa Conflitos Globais e a violação dos Direitos Humanos: a ação do Serviço Social em 18/08/2008 – Conferência Mundial de Serviço Social da Federação Internacional de Trabalho –Salvador (Bahia)

Bom dia a todos (as). É uma honra estar participando dessa mesa com o Sr. Elis Envall e a Sra. Evelyn Balais –Serrano. Quero saudar também minhas colegas Elaine e Elisabete e agradecer ao Conselho Federal de Serviço Social e a FITS por me proporcionarem essa participação.
Este evento, que reúne assistentes sociais do mundo todo, é uma rara oportunidade de conhecermos de perto a diversidade cultural e profissional, em suas particulares expressões. Faz lembrar outros eventos, como, por exemplo, o festival internacional de cinema e o ciclo de cinema sobre direitos humanos: eventos que ocorrem anualmente no Brasil, que permitem uma apreensão privilegiada dos conflitos globais e das diferentes formas violação aos direitos humanos. Nesta conferência, no painel de Ética e Direitos Humanos, temos tido essa rica experiência.
Meus colegas situaram questões importantíssimas, sobre a intervenção profissional e sobre os conflitos globais, em sua relação com os Direitos Humanos. Vou falar sobre o significado dos DH no contexto da sociedade capitalista, assinalando a sua relação com a profissão Serviço Social.

A origem da noção moderna dos DH é inseparável da idéia de que a sociedade é capaz de garantir a justiça – através das leis e do Estado – e dos princípios que lhes servem de sustentação filosófica e política: a universalidade e o direito natural à vida, à liberdade e ao pensamento. Filha do Iluminismo e das teorias do direito natural, essa noção foi fundamental para inscrever os DH no campo da imanência, do social e do político.

De fato, com a sociedade moderna, tem origem a prática política de declarar direitos, o que não tinha sentido quando eles eram tratados de forma transcendente: concebidos como emanação de Deus. A prática da declaração assinala a busca de um consentimento social e político de algo que não é reconhecido por todos[2].

Ao mesmo tempo, as Declarações assinalam situações históricas precisas; que exigem esse consentimento – para assegurar grandes mudanças, para preservar a humanidade da violência, marcando situações revolucionárias - a exemplo das Declarações de direitos das Revoluções Inglesa (1640 e 1688), da Independência Norte Americana, das Revoluções Francesa (1789) e Russa (1917) -, assinalando momentos de grandes traumatismos - com os vividas na Segunda Guerra, com o fascismo e o nazismo, dando origem à Declaração dos DH de 1948 -, buscando assegurar transformações históricas significativas -como as das Conferências firmadas na década de noventa, marcadas pelo fim da das experiências socialistas, pela aceleração do processo de mundialização do capital conhecido como globalização neoliberal.

A configuração moderna dos DH representa um grande avanço no processo de desenvolvimento do gênero humano, pois ao retirar os DH do campo da transcendência, os coloca no patamar da práxis, ou seja, das ações humanas conscientes dirigidas à emancipação. Ao adotar os princípios e valores da racionalidade, da liberdade, da universalidade, da ética, da justiça e da política, incorpora conquistas que não pertencem exclusivamente à burguesia: são parte da riqueza humana produzida pelo gênero humano ao longo de seu desenvolvimento histórico, desde a antiguidade.

Apesar de representar esse avanço, os DH, na sociedade moderna, apresentam as seguintes contradições:

1) Os direitos humanos supõem a universalidade. A sua proposta universal esbarra com limites estruturais da sociedade capitalista: uma sociedade que se reproduz através de divisões (do trabalho, de classes, do conhecimento, da posse privada dos meios de produção, da riqueza socialmente produzida);

2) Os direitos humanos (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) supõem a democracia a e a cidadania, mesmo que seja a democracia formal, o que esbarra com limites reais: econômicos e sócio-políticos, dependendo de cada país e contexto;

3) No contexto da sociedade burguesa, os direitos Humanos supõem a propriedade como direito natural e o Estado e as leis como instâncias universais. Na medida em que a propriedade privada é fundamento da sociedade burguesa – logo, protegida por lei – quando ela é posta em risco o Estado deve protegê-la dos não proprietários. Ocorre que o Estado não está acima das classes, não é neutro; ao usar da violência para proteger a propriedade e – ao mesmo tempo - tratar todos os homens como iguais – afirmando que todos têm direito natural a propriedade em uma sociedade que exclui todos desse direito – evidencia a contradição entre o discurso abstrato da universalidade e a defesa de interesses privados. As Declarações, nesse contexto, ao afirmar a propriedade como direito natural, acabam por legimitimar a violência ao invés de combatê-la.

É nesse sentido que bem afirma Marilena Chauí (1989): as Declarações de DH afirmam mais do podem e menos do que deveriam afirmar.

5) Entretanto, mesmo preso a interesses privados, o Estado não pode se restringir ao uso da força e da violência; por isso, para garantir a sua legitimidade e hegemonia, incorpora determinadas reivindicações das lutas populares por direitos.

Dessa forma, é em nome da universalidade que os movimentos de defesa dos DH lutam pelo alargamento de seus limites burgueses ao longo da história. Com isso, vemos que a história social dos DH é o resultado da luta de classes, da pressão popular, da organização dos movimentos e dos militantes de DH, dos sujeitos políticos em face da opressão, da exploração e da desigualdade.

É uma história de lutas populares especificas progressistas que se intercruzam com outros tipos de luta: anticapitalistas, revolucionárias, de libertação nacional, etc, tendo por unidade a defesa da liberdade, da emancipação política e humana.

É uma história de luta na qual muitos homens e mulheres perderam a vida lutando pelos seus ideais, perderam a vida, mas não a dignidade, deixando como herança a defesa da causa, como Marti Luther King e Che Quevara. E o que dizer então de Nelson Mandela, com sua lição de vida em defesa da liberdade?

As Declarações assimilam tais avanços. como, por exemplo, a Declaração dos DH de 1948 que incorporou os direitos sociais, econômicos e culturais aos direitos civis e políticos, o que foi fruto das lutas do movimento operário nos séculos XIX e XX, objetivadas na Revolução Russa.

O Estado do Bem Estar Social, resultado da pressão organizada do movimento sindical e da esquerda, contribuiu para uma obtenção dos direitos sociais e econômicos aos trabalhadores, ampliando a presença do Estado e dos serviços públicos de saúde educação, habitação, trabalho, previdência, assistência social, etc.

Na década de 60, os movimentos de luta e de defesa de DH alcançaram várias conquistas no âmbito dos direitos civis e políticos: os chamados movimentos das minorias, de mulheres, negros, homossexuais, o movimento estudantil, desencadearam uma série de lutas específicas, dando visibilidade a diferentes aspectos da violência e da exclusão social.

Todavia, a Conferência Mundial dos DH de Viena, em 1993, já ocorreu em um contexto muito diverso. Apesar de ser marcada por avanços significativos em termos de sua representatividade, de suas recomendações pragmáticas e de suas formulações conceituais, entre outras, mais do nunca ficou evidente o seu descompasso em face da realidade: nas palavras de José Augusto Lindgren, membro do comitê de DH em Genebra:

“A universalização do discurso político dos DH, útil em qualquer circunstância, para popularização da idéia de tais direitos – não se coaduna... com o fenômeno da globalização em curso”[3].

Isto porque nos anos noventa estávamos vivendo o processo de mundialização do capital, caracterizado pela internacionalização dos mercados, pela derrubada de fronteiras para o livre transito de mercadorias que não encontra mais limites nem barreiras para a mercantilização de todas as relações sociais.

Neste contexto, a contradição entre a realização dos DH e as condições adversas do capitalismo se aprofunda, daí decorrendo as seguintes conseqüências para os DH:

1) O aprofundamento do abismo entre a desigualdade e a liberdade; a riqueza e a pobreza atinge níveis nunca vistos: a miséria de milhares em detrimento da riqueza de poucos.

2) a pobreza não atinge somente os paises do sul; mas também em paises desenvolvidos; mais de 100 milhões de pessoas sofrem privações nas sociedades mais ricas,

3) O enxugamento do Estado, nos países onde o ajuste estrutural foi implantado, levou a uma diminuição dos gastos com os programas e serviços públicos de atendimento a necessidades como saúde, educação, habitação, previdência, etc. que passaram - ou a iniciativa privada ou a filantropia da sociedade civil;

4) a miséria é material (atingindo o trabalho e a vida em geral), e espiritual (reproduzindo formas de alienação na totalidade da vida social);

5) A desproteção social e a insegurança generalizam-se, fragilizando a vida, a saúde, gerando formas de violência;

6) observa-se o refluxo da organização política de classe dos trabalhadores, rebatendo na organização dos movimentos e reproduzindo uma descrença generalizada na política;

7) uma das políticas decorrentes desse contexto é o de criminalização da pobreza, ou seja, de culpabilização dos pobres pela sua situação social; o que caminha ao lado da naturalização da pobreza ( a idéia de que essa condição é natural, isto é, sempre foi assim e sempre será) e da tolerância zero, que segrega aqueles que a priori são culpados: os negros, os imigrantes, os homossexuais, os usuários de drogas, todos “os diferentes”.

8) esse contexto gera uma cultura de desigualdade e de violência cujos resultados para os DH se expressam sob a forma de um crescente processo de desumanização que expressa a miséria material e caminha ao lado da mais assustadora miséria espiritual. Por exemplo, se mostra na intolerância religiosa, nas limpezas étnicas, nos genocídios, nos estupros coletivos, nos crimes provocados por ódio discriminatório. Nos EUA, por exemplo, esses crimes por ódio, segundo dados estatísticos do FBI, de 1997, mostram que de 11 mil casos, 5.396 ocorreram em função de raça, 1.401, por religião, 1016 por orientação sexual e 940 por origem étnica[4]

9) a defesa dos DH perde o seu vigor, é acusada de se constituir na defesa de bandidos, marginalizando, também, os profissionais que prestam serviços e defendem determinadas populações segregadas socialmente.

Esse contexto em que vivemos desde as ultimas décadas do século XX tem uma ideologia que o sustenta e lhe fornece identidade: a ideologia pós-moderna, que nega a universalidade, a racionalidade, a perspectiva de totalidade, a história, a possibilidade de emancipação, quer dizer, que nega os princípios e valores que deram sustentação à sociedade moderna e aos DH.

Por exemplo, na avaliação de Lindgren, embora a ideologia pós-moderna enfatize o pluralismo e o direito à diferença, ao negar o universal e o político, acaba, muitas vezes, por produzir um enfoque tão absoluto que tende - favorecida pelo capitalismo contemporâneo - a fortalecer concepções e posicionamentos de rejeição ao diferente, como os ultranacionalismos, o neonazismo, as medidas antiimigratórias, a xenofobia, o racismo, etc.

Nesses casos, o grupo que se constitui como intolerante em face dos diferentes é que define os limites do humano tendo por parâmetros a violência, a discriminação, a alienação, a opressão o outro.

Existe uma idéia ética e política que vem de Aristóteles e que diz que - se o homem é criador responsável pelo seu destino ele também pode ser responsável pelo destino da humanidade[5]. Na sociedade moderna, essa idéia alcança o patamar da práxis histórica, dos projetos emancipatórios, o que é negada pela ideologia pós- moderna. Por isso, ela é parte de um projeto de sociedade: um projeto neoconservador que atende às exigências do mercado, na atual fase do capitalismo predatório.

O Serviço Social tem uma longa tradição de luta pelos DH: em todos os continentes e paises em que atua se caracteriza pelo compromisso ético com a dignidade humana, pelo respeito ao outro em todas as suas situações de vida e escolhas, sem discriminações e preconceitos de raça, etnia, religião, orientação sexual, etc. As diferentes concepções e tendências profissionais não estão acima dos valores e princípios éticos que unem internacionalmente os assistentes sociais em uma luta comum.

Os assistentes sociais brasileiros, homens e mulheres, conquistaram avanços significativos, a partir do processo de redemocratização do país, pós-ditadura militar, nos anos oitenta do século XX. São conquistas teóricas, práticas, éticas e políticas, que – em termos do nosso posicionamento ético-político – sistematizado em nosso Código de Ética de 1993, afirma nossa defesa:
1) dos direitos humanos – civis, políticos, sociais, econômicos e culturais,
2) da democracia (socialização da riqueza e da participação política)
3) da liberdade – emancipação, autonomia;
4) da justiça social;
5) da não discriminação (raça, etnia, orientação sexual, religião, idade, etc).
6) do pluralismo (todas as correntes democráticas existentes.

Como categoria profissional nos orientamos por um projeto profissional que tem articulações com um projeto de sociedade posto no horizonte de construção de uma nova sociedade:

“Sem dominação, exploração de classe, etnia, gênero, uma sociedade que propicie aos trabalhadores o pleno desenvolvimento para a invenção e a vivencia concreta de novos valores o que evidentemente supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação”[6] (CFESS: 1993).

A realização desses valores depende, no entanto, de condições objetivas que – como assinalamos, hoje, são bastante adversas. As questões éticas e políticas que estão vinculadas ao debate dos DH são inúmeras e complexas, especialmente porque elas não podem ser desvinculadas de suas determinações sócio-econômicas e ideo-políticas. Precisaríamos de mais tempo para debater. Por ora, gostaria de deixar alguns pontos para reflexão:

1. Pelo exposto, no meu entender, a defesa da universalidade é algo positivo: uma conquista humana valiosa que deve ser preservada, especialmente na atual conjuntura, pela dinâmica das relações sociais burguesas e pela força da ideologia pós-moderna ou neoconservadora. Estando em um evento internacional, pergunto: Como realizar a universalidade sem cair em dois opostos: no relativismo e no autoritarismo?

2. Uma das questões apontadas nesse debate refere-se aos dilemas e conflitos profissionais nas situações em que os direitos não podem ser objetivados por determinações institucionais e por relações de poder, etc. Pergunto: Considerando que o enfrentamento de tais conflitos não é um problema individual, seu enfrentamento não deveria ser objeto de debates e de decisões coletivas e estas não poderiam ser revertidas em estratégias legais e políticas, dando respaldo aos profissionais para que eles possam se contrapor às determinações institucionais para o atendimento das necessidades dos usuários? Por exemplo, o Código de Ética pode ser um instrumento de defesa profissional em face das normas institucionais, permitindo aos profissionais maior autonomia nas decisões.

3. Uma das maiores dificuldades de objetivação do conjunto dos DH reside na realização dos direitos sociais econômicos e culturais, pois, como já assinalamos, eles exigem maior enfrentamento da contradição entre os direitos e os limites da realidade burguesa. Pergunto se devemos continuar defendo esses direitos sem explicitar essa contradição fundante; sem dar uma dimensão política (ou melhor, sem explicitá-la) à defesa dos DH.

Se a vinculação entre os DH e suas determinações sócio-históricas torna evidente os limites de sua realização, isto coloca, ao mesmo tempo, a exigência de sua defesa, tendo em vista o contexto de desumanização em curso. Nesse sentido, no âmbito do Serviço Social, é possível eleger a liberdade e a democracia - como valor ético e princípio político –, contando, então, com um rumo ético e uma medida política – importantes instrumentos de um projeto profissional na defesa dos DH.
Obrigada.

Bibliografia

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Trindade, J. Damião de L. História Social dos Direitos Humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002.
[1] Assistente Social, Dr em Serviço social, Prof. de Ética e coordenadora do Núcleo de Ética e Direitos Humanos (Nepedh) da PUC-SP.
[2] Chauí, Marilena. “Direitos Humanos e medo”. In Direitos humanos e.... São Paulo, Comissão de Justiça e Paz: Editora Brasiliense, 1989: 20).
[3] Alves, J. A Lindgren. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005: 49).

[4] Alves, J. A Lindgren. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2005: 17.

[5] Barroco, M Lucia S. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2008: 213.
[6] CFESS. Código de Ética Profissional do Assistente Social. Brasília, CFESS: 1993.

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