Eu quero primeiro agradecer e dizer que é um prazer estar aqui. Morei em Londrina, dois anos. Já faz ‘um pouco de tempo’: foi bem antes dos 35 anos desta universidade. O meu marido trabalhou na companhia que construiu a Rodovia do Café. Então, morei em Ponta Grossa, em Londrina... Depois, nós tivemos o golpe militar e eu fui para Curitiba, onde fiquei 10 anos. Foi por isso que a Silvia[2] falou que eu sou quase paranaense, porque, de fato, não só morei aqui bastante tempo, como gostei muito e fiz grandes amizades, amizades que existem até hoje. Não é Lídia[3]? Lídia é do meu tempo de Curitiba, mas ela é bem mais nova, bem mais nova. Só para vocês terem uma idéia, eu fui supervisora da Odária[4] quando ela estava fazendo seu TCC. Quem orientou o TCC da Odária fui eu.
A Silvia quando me convidou disse que era para conversar um pouco com vocês. Eu até pensei que fosse uma coisa menos formal. Vou confessar que se eu soubesse que era assim, mais formal, eu teria preparado um discurso, mas, como já não preparei, agora, vamos assim por esse caminho.
Eu pensei em fazer essa minha fala em duas partes: a primeira, com uma reflexão sobre a origem do Serviço Social no Brasil. Eu coordenei - antes do núcleo de pesquisa da criança e do adolescente que coordeno agora - um núcleo de pesquisa sobre a história do Serviço Social. A Lídia fez parte desse núcleo. Dele saíram várias teses de doutorado e algumas dissertações de mestrado. Então, nessa época, nós pesquisamos a história. Eu mesma já vivi uma boa parte dessa história, desses 70 anos. Eu já fiz o meu jubileu de ouro como assistente social: 50 anos de formada. Então, desses 70 anos, 50 eu vivi diretamente.
Existem algumas coisas de que eu posso falar a partir da minha própria experiência e outras que são resultado de minhas análises, das apreensões que fui fazendo com base nos relacionamentos que tive com as pioneiras e com os pioneiros. A faculdade onde eu fiz o meu curso foi a primeira escola de Serviço Social do Brasil - a Escola de Serviço Social de São Paulo – que, na época que eu estudei se situava na rua Sabará, em Higienópolis, um bairro nobre da cidade. É essa mesma escola que agora está integrada na PUCSP. Naquela época ela já era uma escola ligada à Universidade Católica, que funcionava em uma casa isolada. Era uma escola isolada, mas que fez história.
Então, nesta primeira parte, eu pensei em contar um pouco a respeito do meu olhar sobre essa história. Porque a história, além de ser muito dinâmica e construída no contexto das relações, tem o significado do olhar de quem a olha. Eu vou falar para vocês sobre o meu olhar sobre a história: como eu vejo aqueles primeiros anos do serviço social e como vejo essa história se construindo até agora. Na outra parte, eu penso em falar da minha participação na criação da escola de Londrina, na qual eu tive, de certa forma, uma pequena colaboração, mas que foi importante até para sua existência.
A construção de uma profissão ou de uma instituição é resultante do movimento da história. No século XIX, a sociedade ocidental estava em um processo de transição bastante acentuado para um novo tipo de relação social e econômica no contexto do capitalismo, o capitalismo monopolista. As evidências do capital como determinante do processo de produção, que tiveram início em meados do século XVIII, se consolidaram no século XIX, quando também começaram a preocupar os problemas que estavam gerando. Na emergência da industrialização, da concentração de riquezas e do modelo capitalista de relações de trabalho, existia uma grande esperança de uma nova e melhor qualidade de vida para a população, mesmo porque, com esse novo tipo de relação de trabalho, abolira-se a servidão. Existiam os feudos, os moradores daqueles feudos eram servos, não eram escravos, mas eram servos, não tinham direito à propriedade do território onde viviam; pagavam impostos sobre a sua produção ao senhor feudal e lhes juravam fidelidade. Este tipo de relação social começou a se desmanchar e um novo tipo de relação emergiu, na qual o trabalho era acertado por contrato e o gentio teve acesso à propriedade privada. Com o uso de novos e mais avançados maquinários, houve aumento da produção, dando espaço para que se tivesse a expectativa de que se iria acabar com a fome, e que as pessoas teriam melhores condições de vida e de trabalho. Essas esperanças, aos poucos, foram sendo frustradas pela realidade, onde ia se engendrando algo que, já então, passou a ser nominado de questão social, desencantando diferentes segmentos da sociedade.
Por essa época, começaram emergir críticas e preocupações com os rumos da sociedade em razão do tipo de relações construídas no sistema capitalista. A pobreza, que já existia muito antes da implementação desse novo sistema, ficou mais evidente aos olhos da sociedade, principalmente por causa da concentração de pessoas pobres nos centros urbanos e da ausência de quem por elas se responsabilizasse. Nos feudos, a servidão era um problema mas, ao mesmo tempo, era uma solução para os problemas de segmentos mais vulneráveis da população: os senhores feudais eram responsáveis pelos seus servos, assim como os donos de escravos eram responsáveis pelos seus escravos. Tanto entre os antigos servos, quanto entre os antigos escravos, a abolição do regime foi, ao mesmo tempo, um momento de libertação e de mudança, mas também um momento muito trágico de luta pela sobrevivência para grandes contingentes populacionais.
Análises feitas nos anos 1800, sobre a situação da população nesses primeiros tempos do capitalismo, da industrialização, foram deixando muito evidentes esses problemas. Também se evidenciou a exploração da mão-de-obra, não apenas dos adultos: havia crianças desde muito pequenas trabalhando em trabalhos pesados e insalubres. Chegaram até nós documentos que mostram essa realidade. Havia problemas muito sérios, que foram denunciados, principalmente, pelos chamados ‘socialistas utópicos’, nas primeiras décadas do século XIX (Saint-Simon, Fourier, Owen) e, em 1848, pelo Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels.
Essa realidade preocupava diferentes grupos e, principalmente, a Igreja Católica, que, nos finais do século XIX, escreveu uma encíclica colocando a posição da Igreja frente a essas relações capitalistas. Nesta encíclica, de 1891, chamada Rerun Novarun, a Igreja denuncia a questão social, pondo em discussão um dos princípios fundamentais do liberalismo: a crença no funcionamento das leis de mercado. A Rerum Novarum apresentava uma proposta de sociedade como contraponto à questão social. Esta proposta foi conhecida como uma “terceira via”, que negava o capitalismo selvagem e o comunismo materialista e propunha o humanismo cristão. Dizia Leão XIII: De nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital... Essa proposta foi reafirmada quarenta anos depois, por Pio XI, em 1931, em uma outra encíclica que foi chamada Quadragésimo Ano. Esta encíclica avançou mais nas propostas que compunham o que hoje conhecemos como a Doutrina Social da Igreja. Nela, Pio XI afirmava serinteiramente falso atribuir, ou só ao capital ou só ao trabalho, o produto do concurso de ambos, e é injustíssimo que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a sí todos os frutos.
Na verdade estas Encíclicas não representavam uma recusa ao capitalismo como meio de produção, mas continham uma proposta de humanização das relações capital/trabalho, através da justa distribuição dos resultados da produção, do salário justo que possibilitasse ao trabalhador a manutenção de si próprio e de sua família, da participação dos trabalhadores nos lucros, da oportunidade dos mesmos construírem um patrimônio com o excedente de seu salário. Nestas Encíclicas, também, a Igreja posicionava-se em favor da intervenção do Estado no controle dessas relações.
Por que estou falando isso? Porque é nesse movimento da Igreja, nesta proposta, que foi se engendrando o Serviço Social, como um novo tipo de profissão que iria fazer frente àquelas situações concretas, que iria ser (eu sempre brinco com essa figura) “o braço armado da Igreja” para a implementação de sua doutrina.
É essa a perspectiva do meu olhar para a gênese do serviço social: em seu nascedouro esta profissão teve um componente eminentemente político, foi fruto de uma proposta política. Foi uma proposta política que, como qualquer outra, desenvolveu estratégias para sua implementação.
Na Europa, há dois anos atrás, foram festejados os 100 anos do Serviço Social. Nós tivemos 30 anos de defasagem em relação à Europa e, aproximadamente, 20 anos em relação aos Estados Unidos. Esta diferença de tempo histórico, eu atribuo ao atraso na penetração do capitalismo nas relações brasileiras. No Brasil, a sociedade e, em decorrência, a Igreja, começam sentir a necessidade de um posicionamento face à questão social com um atraso de 20, 30 anos em relação aos países europeus e aos Estados Unidos.
Quando esta preocupação chegou ao Brasil, já havia uma industrialização incipiente, já estavam postos os espaços onde se faziam ouvir os reclamos dos trabalhadores nas greves e nos movimentos anarquistas, comunistas e socialistas que formavam seus quadros e estavam se firmando como grupos (partidos) que tinham propostas alternativas de relações de sociedade.
Face à esse novo quadro, a Igreja, no Brasil, se mobilizou e desenvolveu as estratégias já seguidas em território europeu, para implementação, divulgação e construção da sua proposta política, estruturada como uma doutrina: a Doutrina Social da Igreja.
A estratégia desenvolvida no Brasil se apoiou em um tripé. Um de seus pilares era formado pela mais evidente estratégia assumida pela Igreja - o envolvimento do laicato (dos leigos) nesta ação, principalmente o laicato jovem - foi criado, na década de 1920, o movimento de Ação Social Católica, que coordenava agrupamentos de leigos militantes por categorias: a Juventude Universitária Católica - JUC, a Juventude Estudantil Católica - JEC (dos estudantes secundaristas), a Juventude Independente Católica - JIC, a Juventude Operária Católica - JOC. Além desses agrupamentos, havia os movimentos operários coordenados pela Igreja, os Centros ou Círculos Operários que funcionavam nos bairros e cidades industrializadas. O segundo pilar foi o investimento na formação de quadros, na construção de uma intelectualidade católica, capitaneado por Dom Sebastião Leme, com a criação do Centro Dom Vital, da revista Ordem e da implantação do Instituto Superior de Estudos Católicos no Rio de Janeiro, precursor das Universidades Católicas que passaram a ser criadas em quase todos os estados brasileiros, com formação fortemente doutrinária. O terceiro pilar desse tripé foi a conquista de um partido político: naquela época já existia um partido católico o Partido Democrata Cristão - PDC, que estava nas mãos dos integralistas católicos. Um grupo ligado à ação católica, que era a vanguarda da Igreja (do qual faziam parte os assistentes sociais José Pinheiro Cortez e Helena Iraci Junqueira) se organizou e tomou a direção do partido.
Com isso, eu estou querendo mostrar o quanto este não foi um movimento de cunho eminentemente assistencial, como se costuma ouvir falar quando se trata das origens do Serviço Social brasileiro. Ele foi parte de um movimento político, doutrinário, mobilizado para fazer uma intervenção que tinha por objeto a questão social.
Eu ia fazer meu pós-doutorado com o Michael Löwy, na França, sobre o Serviço Social. Minha tese é que a visão de mundo anti-capitalista romântica poderia ser uma categoria explicativa que permitiria compreender essa nossa profissão desde os seus primórdios até hoje. Neste estudo o serviço social seria visto, como qualquer outra profissão, a partir de sua estruturação histórica. Essa estruturação é composta por vários elementos – ideologia, teoria, ciência, método, objeto, especificidades, conhecimentos, instrumentais, procedimentos, normas – que se relacionam e dão unidade a essa estrutura. Esses elementos estruturais se consolidam, se modificam, são eliminados, são substituídos por outros, em uma dinâmica regida por determinações externas (sócio-históricas) e determinações internas (conjunturais), o que não significa que não permaneçam “impurezas” e “sobrevivências” dessas transições.
Neste momento, eu me lembro da tese de doutorado da Lídia[5], que teve como idéia básica para o título de um de seus capítulos (que tratava da transição do doutrinarismo para o primeiro momento do marxismo no Serviço Social) uma afirmação bem significativa para exemplificar o que estou dizendo: Saiu dos braços de Jesus, e caiu nos braços de Marx. A ideologia permaneceu doutrinária, mas o seu conteúdo, que em seus primórdios era católico, transmudou com a incorporação acrítica das idéias de intérpretes de Marx. Outra idéia significativa da tese da Lídia, que mostra bem esse movimento foi: Deixou de preocupar-se com o pecado original e passou a preocupar-se com o pecado de classe. Com estes exemplos eu estou querendo mostrar que os elementos estruturais eram os mesmos, os conteúdos é que mudaram nesses momentos da nossa história.
Portanto, quando eu discuti com o Michael Löwy sobre qual seria a minha tese para o pós-doutorado, levei por proposta a afirmação de que o serviço social, desde o seu nascedouro tem uma característica que é de luta e, essa luta tem uma bandeira, que é o anti-capitalismo romântico - essa é uma luta com fundamento utópico: o desejo de uma relação de sociedade ainda não alcançada. Eu defendo que esta utopia (tendo como fundamento um tipo diferente de relação) já estava presente entre os pioneiros do serviço social, quando eles pugnavam pelo humanismo cristão. Tanto isso é verdade que eles não só tomaram partido político como fizeram deputados, vereadores, e dirigentes executivos (prefeitos, governadores). E, nas salas da Escola de Serviço Social da Rua Sabará, foram discutidas muitas propostas de projetos de lei apresentados na época, como, por exemplo, do salário mínimo e do salário-família. Era um grupo formado por André Franco Montoro, José Pinheiro Cortez, Helena Iraci Junqueira, Susana Medeiros e outros, que discutiam, no contexto das idéias da democracia cristã. Helena Iraci Junqueira foi a primeira vereadora mulher da cidade de São Paulo (tanto que ela brincava que o primeiro banheiro feminino na Câmara só foi construído depois que ela foi eleita).
Essa é uma característica que quase não se vê analisada quando se pretende recuperar a história do Serviço Social. Este grupo pioneiro foi um grupo extremamente lutador: eles conseguiram em pouco tempo a legislação que legitimava a profissão, antes de muitas outras profissões. Eles conseguiram também montar, em meados da década de 1940, uma organização que agrupava as unidades de ensino do Serviço Social, a ABESS- Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social, com o objetivo de possibilitar a troca de experiências e o progresso do ensino. São muito poucas as profissões que contam no Brasil com esse tipo de organização e, mesmo na nossa profissão são poucas essas organizações no exterior. Por exemplo, em Portugal, há uma grande preocupação porque estão proliferando enormemente os cursos de Serviço Social e a associação de escolas deles ainda é muito nova, não tendo ainda conseguido consolidar-se. Aqui, a associação de escolas de Serviço Social que temos, é responsável pelas diretrizes do ensino da profissão, o que permite que ela tenha uma certa unidade em todo país: uma unidade na diversidade. Não quero dizer com isso que o Serviço Social seja homogêneo no Brasil, mas que tem elementos comuns em todo o território nacional: é uma única profissão, num país do tamanho do nosso!
Existiram muitos movimentos marcantes deste grupo pioneiros, ao qual nós devemos muito. Nós passamos por momentos da história brasileira em que os/as pioneiras(os) tiveram papel importante. Se vocês se lembrarem que uma das pioneiras, da primeira turma de Serviço Social, Nadir Gouvea Kfouri, foi a reitora da PUC de São Paulo que, tendo sido indicada pelo cardeal, instituiu a democracia e o voto direto para a reitoria da Universidade, e quando ela instituiu isso, ela foi a primeira reitora eleita e só não se reelegeu outras vezes porque o estatuto não permitia e porque ela se afastou da universidade por aposentadoria.
Só vou relatar mais um fato relacionado à execução desta proposta política. Nos primeiros anos do Serviço Social, ainda na década de 30, o Dr. José Pinheiro Cortez (que não tem qualquer parentesco com o Cortez da editora) estava fazendo a faculdade de Direito, do Lago São Francisco (atualmente, incorporada à USP) e era também militante da JUC - Juventude Universitária Católica (O Dr. Cortez era uma pessoa muito religiosa – ele, uma vez, brincou comigo dizendo que só não era franciscano porque se apaixonara pela mulher com quem se casou, mas ele estava se encaminhando para ser franciscano. Os franciscanos têm voto de pobreza – este voto de pobreza que ele cumpriu pela vida inteira). Enquanto participante da JUC, ele foi chamado pelo mentor espiritual de seu grupo, que lhe disse: Você tem uma missão: nós estamos precisando de uma escola masculina de Serviço Social e é você quem vai criar – isto significa que ele não criou a nova escola porque quis, mas por imposição da Igreja da qual ele fazia parte. O seu mentor determinara: Você vai fazer o curso de Serviço Social para poder criar uma escola masculina, que dará bolsas de estudo para operários. Porque nós precisamos disseminar a doutrina entre o operariado. Foi, então, criada uma escola masculina que inicialmente se chamou Instituto de Serviço Social de São Paulo (que, quando eu fazia meu curso na Sabará, funcionava no edifício Martinelli) e hoje em dia é a Escola Paulista de Serviço Social. Em seguida à sua criação em São Paulo, foi criado um campus no ABC, em São Caetano, justamente para cumprir esse objetivo de formação de operários assistentes sociais. É por isso que eu brinco - mas não é muito brincadeira - que o Serviço Social tinha esse papel de “braço armado da Igreja” – era aquele que chegava perto da população, junto ao operariado, para fazer a disseminação da doutrina, da proposta política, social e ideológica da Igreja.
Eu acho que esse olhar, esta perspectiva do Serviço Social, é bastante importante para compreender sua história. Em geral, quando se fala da história do Serviço Social, fala-se do seu lado assistencial. Este lado assistencial já existia naquela época, mas não era a sua ‘mola mestra’, o seu eixo era a proposta política de enfrentamento da questão social.
Um outro aspecto que eu gostaria de ressaltar deste momento inicial da profissão – do qual sou grande admiradora - é o método. Aquela divisão de métodos de caso, de grupo e de comunidade que nós mais conhecemos, não era o que havia nos primórdios do Serviço Social – só passou a ser adotada depois que o país estabeleceu uma relação Brasil–Estados Unidos, que incluía no Ponto 4 do acordo, a facilitação de ida de bolsistas para formação nos Estados Unidos - foi quando um grupo de professores das Escolas de Serviço Social brasileiras, trouxe essa metodologia. Mas até essa época, o método de intervenção do Serviço Social era o adotado pela Ação Católica e se estruturava a partir de círculos de estudos.
Eu estudei nessa época, quando o curso era de tempo integral. Nos círculos de estudos procurava-se saber o que estava acontecendo, como estava acontecendo, quem fazia e o que estava sendo feito – era o ‘ver’. Em seguida, vinha o ‘julgar’ - quando eu comecei a estudar planejamento, eu pensei: Será que esse julgar significa fazer um diagnóstico? Não era a mesma coisa: era um julgamento ético-moral, norteado pela ética da Igreja. Não era a moral que se pergunta “casou ou não casou? está dormindo com quem?”, não era nessa linha da moral, era uma moral com base em uma ética doutrinária. Fazia-se um julgamento ético-moral a respeito de cada questão que entrava em pauta. Eram discussões aprofundadas, por isso precisava-se de período integral. Depois, vinha o ‘agir’: o que vamos fazer face a isso? Qual a nossa responsabilidade face ao que está acontecendo? Nós nos acostumávamos, então, a assumir responsabilidades face às coisas que aconteciam na comunidade, na cidade, no país, no mundo. Nós éramos cobrados disso a toda hora, pelo menos duas vezes por semana, nos círculos de estudos.
A base - a formação ética e moral - nesses cursos pioneiros era forte. Nós tínhamos três disciplinas do curso de Serviço Social que tratavam disso: ética, ética profissional e Doutrina Social da Igreja. E essa ética era vivida cotidianamente: ninguém cuidava das provas, porque você tinha que desenvolver a sua responsabilidade ética em relação a sua formação. E era muito pesado - eu tive colegas que saíram (não foram mandadas embora) porque não agüentaram o peso de ter colado em uma prova - dizia-se que se estava preparando uma elite, eticamente bem formada, para implementação da doutrina. Você tinha uma responsabilidade, e a pessoa fazia o ‘mea culpa’ - eu não sirvo, eu não agüento - e saía. Hoje em dia parece um absurdo, ou bobagem mas, na verdade, nós tínhamos esse tipo de pensamento impregnado, ficávamos o dia inteiro alí, recebendo essa formação.
Uma outra coisa também era a nota, principalmente a do trabalho prático (eu estou dando esses exemplos porque acho que são interessantes e, como isto não está escrito em nenhum lugar, vocês estão tendo um depoimento de quem viveu essa experiência). Nós tínhamos estágio desde o início do curso. Ao final do semestre a supervisora (a minha era a Antonieta Guerrero) e a aluna sentavam frente a frente e ela falava: “Pense no que você fez, que nota você se dá?”. Você é que dava a sua nota - mas antes tinha que fazer um exame de consciência.
Por que eu estou falando isso tudo aqui? Para recuperar uma face do Serviço Social que é muito pouco explorada, que é essa face da luta, do compromisso e da ética, que acompanhou o Serviço Social desde o seu início. Era um outro momento da história, um outro momento do Brasil: não tínhamos televisão para ficarmos sabendo das coisas que estavam acontecendo e tínhamos outra maneira de lidar com as questões.
Essa era a primeira parte do que eu estava querendo falar. Nesta outra parte, eu quero contar a respeito da minha participação na história desta Universidade.
Quando eu me formei, eu casei. Uma das exigências do meu marido para casar comigo foi a entrega do Trabalhou de Conclusão do Curso – TCC: se eu não entregasse o TCC, ele não casava, nem preciso dizer que eu fiz o TCC rapidamente. Tanto é que eu fiz bodas de ouro e jubileu de ouro de formada ao mesmo tempo.
Bem, o meu marido é engenheiro construtor de estradas e, na década de 1960 nós viemos para o Paraná para a construção da Rodovia do Café, que liga o norte do Paraná com o porto de Paranaguá. Primeiro eu fui morar em Ponta Grossa, porque estava sendo feito aquele trecho da estrada. Quando nós tivemos que mudar para Londrina, para fazer este outro trecho, estávamos em março, nos finais das chuvas, quase à entrada do outono... Quando viemos, tinha havido um “chuvão”, e como não havia estrada asfaltada, o caminho estava intransitável. Para chegarmos em Londrina o caminhão da mudança teve que ir para São Paulo e entrar no Paraná por Jacarezinho - porque o norte do Paraná era ligado por rodovia asfaltada a São Paulo e, conseqüentemente, ao porto de Santos. Todo escoamento da produção do norte do Paraná se fazia pelo porto de Santos. O governador do Paraná, na época, Ney Braga, assumiu como uma das primeiras medidas, o projeto da Rodovia do Café. Nós viemos para cá por causa dela - eu morei um ano em Ponta Grossa e, depois, vim para Londrina.
Eu era assistente social, tinha quatro filhos pequenos (em seis anos eu tive quatro filhos e doze mudanças, porque como meu marido construía estrada, eu ia para onde não tinha estrada e, quando a estrada era construída eu mudava para onde não tinha...) Eu vim com a criançada - eu não estava trabalhando em Serviço Social: fiquei dez anos longe do trabalho externo, trabalhando muito, mas dentro de casa. Tinha uma prima do meu marido que estudava no colégio Mãe de Deus, onde era realizado um trabalho social. Naquela época, em Londrina, não havia favelas. Havia um lugar onde algumas pessoas construíram suas casas - era onde os proprietários, japoneses, tinham sido mortos no final da guerra, por seus compatriotas – era uma invasão porque aquelas terras não tinham mais dono. Eu não sei mais onde fica: já se passaram muitos anos. Nessa invasão era realizado um trabalho das alunas do Colégio Mãe de Deus. As freiras ficaram sabendo que a prima de uma delas era assistente social e me chamaram para dar uma força lá, fazer uma supervisão do trabalho que realizavam.
Eu comecei a fazer essa orientação e um dia Dom Geraldo, que era o bispo de Londrina, me chamou e disse que queria fazer uma escola de Serviço Social na cidade. Convidou-me, então para organizá-la. Eu achava muito difícil porque só havia duas assistentes sociais em Londrina, eu e a assistente social do SESC. E me perguntei: Com que base eu vou criar uma escola de Serviço Social com apenas dois profissionais da área na cidade? Neste mesmo dia, eu fui chamada pelo pessoal do Colégio Londrinense porque eles também queriam uma escola de Serviço Social - os protestantes também queriam uma escola de Serviço Social. Eu senti que era uma coisa que estava no ar - ou um ficou sabendo da idéia do outro, não sei. E eu pensei: Se estão querendo tanto uma escola de serviço social é porque existe um espaço para essa profissão em Londrina.
Neste momento eu vou fazer um outro parêntesis: eu era “peixinho” da escola de Serviço Social de São Paulo, “queridinha da escola”, porque casei com o sobrinho da bibliotecária, que era de uma das primeiras turmas, a Margarida Pizante, que é uma pessoa estimadíssima lá. Como eu era sobrinha dela, por procuração, eu tinha vantagens de relacionamento naquela escola. Então, pensei: Eu vou lá, ver se eles me apóiam para abrir essa escola. Eu fui. Fui recebida por Dna. Helena Junqueira e Dna. Nadir Kfouri - que foram minhas professoras e eram minhas amigas. Elas tiraram da minha cabeça: disseram que era uma loucura, que eu não deveria nem pensar nisso (elas sempre foram contra a proliferação de escolas - desde o Instituto de Serviço Social – porque queriam garantir a qualidade doutrinária da formação).
Bem, se eu não podia contar com elas, eu estava disposta a desistir da idéia. Aí, eu desci e fui falar com a minha tia Margarida. A Margarida me vira chegar e estava querendo saber o que eu tinha ido fazer lá, e eu contei toda a história para ela. Sentado na mesa de leitura da biblioteca, estava o Dr. Cortez, que ouviu tudo. Quando eu acabei de contar para Margarida, o Cortez falou: Eu ‘topo’. Ele já havia criado a escola masculina, que nessa época já não era mais exclusivamente masculina, já era mista - mas sempre foi uma escola que teve um contingente maior masculino do que feminino.
O Cortez sentia que tinha possibilidade de apoiar esse projeto: ele era um sonhador que sonhava sonhos possíveis, não era um sonhador de sonhos impossíveis. Ele era também uma pessoa que se entregava por inteiro. E, como ele tinha voto de pobreza, não esperava retribuição econômica das coisas que fazia, ele se dedicava por convicção.
Por essa época, o Dr. Cortez era o Secretário Geral do Partido Democrata Cristão (mantinha-se nesse cargo desde aqueles primórdios, quando eles tomaram o partido) e o governador Ney Braga fora eleito por esse Partido. Então, o Dr. Cortez disse que poderíamos fazer um projeto amplo porque havia possibilidades objetivas para que ele transitasse favoravelmente no governo do Estado. Eu então perguntei:Mas isso não é uma loucura? Só existem duas assistentes sociais em Londrina, como nós vamos criar uma escola? O Dr. Cortez, então, explicou-me que a criação de uma escola de Serviço Social só teria sentido como resultado de um movimento maior - que seria um movimento no sentido do desenvolvimento macroregional do norte do Paraná – que incluía o norte velho, o norte novo e o norte novíssimo - este movimento traria não só mais profissionais, mas também a necessidade de novos profissionais e de criação de um centro de formação de profissionais que movimentassem isso, eram os assistentes sociais: cabia então uma escola de Serviço Social para formar pessoas para essa mobilização. Nós estávamos no momento do desenvolvimentismo: a minha tese de doutorado é sobre isso: Desenvolvimento de Comunidade como nível do sistema de desenvolvimento.
O Dr. Cortez foi, então, conversar com o governador Ney Braga que designou o Dr.Adail Spengler Passos, que era Secretário de Governo, para acompanhar o planejamento e a execução desse processo de desenvolvimento macro regional e, no bojo desse projeto iria precisar de profissionais.
Como eu morava em Londrina, a minha contribuição inicial para a realização desse projeto foi disponibilizar meu apartamento para hospedagem da equipe: Maria Inês Bernardes Pinto, Dr. José Pinheiro Cortez e a Maria Luísa Heder.
Então, nós começamos a nossa peregrinação pelo norte do Paraná: falávamos com os prefeitos, com as organizações, os sindicatos... fazíamos reuniões enormes, em cinemas. Juntávamos um monte de gente para fazer o diagnóstico macro regional, o diagnóstico desta região inteira, com o apoio do governo do Estado.
Nós estávamos mergulhados em um processo grande de mobilização, quando, em pleno entusiasmo, fomos surpreendidos pelo golpe militar de 1964. Então, o Dr. Cortez recebeu um telefonema do Ney Braga dizendo: Pare com tudo, porque agora não dá pra fazer mobilização de massa. E, aí, nós paramos, mas nesse processo nós já havíamos entrado com o pedido para a criação da escola de Serviço Social no MEC.
O primeiro governo militar proibiu a criação de alguns novos cursos, incluindo o de Serviço Social. Quando foi criada a UEL, eles descobriram o processo que autorizava a criação de uma faculdade de Serviço Social em Londrina, e isto tornou possível a abertura do curso. Foi o único curso de Serviço Social que pode ser aberto naquela época, isto porque já tinha um processo anterior aprovado. Não fomos nem nós que descobrimos, nem que dissemos que tinha, eles descobriram no MEC esse processo, e como era o processo para uma faculdade em Londrina, ela pode acontecer.
Aí tem outra história engraçada. Nesse meio tempo, eu morei 10 anos em Curitiba, e depois nós voltamos para São Paulo, e eu fui trabalhar na Secretaria da Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. Um dia eu recebi um telefonema da Profª Odária: a primeira turma ia se formar e ela me convidou para vir para a formatura desta turma. Aí, eu me preparei para contar esta história que acabei de contar para vocês, e vim. Quando eu cheguei, o aeroporto estava cheio de gente e estavam também os dois canais de televisão, e eu pensei: Deve ter alguém importante chegando aí. Mas, quando vi, a pessoa que eles estavam esperando era eu. Foi nesse dia que eu fiquei sabendo da ligação da minha antiga história, com a história do curso de Serviço Social da UEL. Houve uma homenagem para mim contando essa história, contando aquele movimento que havíamos vivido. Eu pedi para a Odária: Tente localizar esse discurso que conta essa história, porque quem tinha mais detalhes era o Doutor Cortez e ele já morreu.
Ela tem essa história. Houve a preocupação de documentar essa história por uma das professoras daqui, mas foi uma professora que ficou doente e não completou a dissertação de mestrado. Ela recolheu muito material sobre isto, porque entrevistou o Cortez, a Maria Inês Bernardes... É por isso que eu me sinto um pouco daqui, da UEL. Eu sinto que faço, um pouco, parte dessa comunidade de vocês.
Era mais ou menos isso que eu estava pensando em contar, numa conversa descontraída - não pensei na formalidade, mas foi um prazer ter esta oportunidade. Eu também quero dizer que foi gostoso poder falar aqui. Quero dizer também que eu conto essa história, do início do Serviço Social, porque eu me sinto comprometida com as pioneiras. Elas se sentiram magoadas com a história que vinha sendo contada do Serviço Social, então, eu assumi o compromisso de levar também o meu olhar. Foi também por isso que criei o Núcleo de História do Serviço Social na PUC de São Paulo. O Dr. Cortez participou todo o tempo em que esse Núcleo funcionou. Desse Núcleo saiu a tese de doutorado da Lídia, a tese de doutorado do José Paulo Netto, da Maria Raquel Tolosa Jorge, entre tantas outras. Saíram várias teses de doutorado sobre a história do Serviço Social nas várias regiões de São Paulo, sob diversos ângulos...
Mas, ainda está faltando aquele momento em que se pega tudo o que foi produzido e se reconstrói a unidade da história da profissão. Eu vou deixar esse desafio para vocês. Obrigada
[1] Palestra proferida no evento “70 anos de Serviço Social no Brasil”, realizado em 24 de outubro de 2006 e promovido pelo Curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina – PR.
[2] A palestrante se refere à Profª Silvia Alapanian
[3] A palestrante se refere à Profª Lídia Maria Monteiro Rodrigues da Silva
[4] A palestrante se refere à Profª Odária Battini
[5] A palestrante se refere ao trabalho intitulado “Aproximação do Serviço Social à Tradição Marxista: Caminhos e Descaminhos”, Tese de Doutoramento em Serviço Social da Professora Doutora Lídia Maria Monteiro Rodrigues da Silva, PUC/SP, 1991.