A Outra América
Boaventura de Sousa Santos
Acabo de participar em Nova Iorque no Fórum da Esquerda, uma organização com uma longa tradição nos EUA que anualmente reúne centenas de intelectuais e activistas progressistas para discutir temas e problemas da actualidade política do país e do mundo. O que se discute em dois dias de intensos debates dá-nos uma imagem dos EUA muito diferente daquela que é veiculada pelos média internacionais.
Em vez da América arrogante e belicista, a América solidária e pacifista, apostada em pôr termo à guerra no Iraque e a todas as outras que os falcões de Washington estão já a preparar (incluindo a guerra nuclear). Em vez da América que dá lições de democracia ao mundo, a América ansiosa por aprender com as lutas que, noutras regiões do mundo, sobretudo na Europa, vão resistindo contra o aumento da desigualdade, a degradação e a privatização dos serviços públicos de saúde, educação e segurança social.
Daí a forte presença de uma delegação dos sindicatos italianos, confiantes na vitória contra as alterações da idade de reforma e do regime de pensões propostas pelo Governo Prodi. Em vez da América rica e viciada no consumo ostentatório, a América de mais de 40 milhões de pobres, a maior parte deles trabalhadores cujos salários de miséria não lhes permite viver acima da linha da pobreza, nem dispor de um seguro médico. E a América de muitos outros milhões para quem um acidente, uma doença ou a ameaça de desemprego os põe em risco permanente de deixar de poder pagar as hipotecas das casas e suportar os custos elevadíssimos dos seguros médicos privados (uma vez que a maioria dos novos empregos não incluem seguro médico). Em vez da América opulenta da 5ª Avenida, as cidades devastadas pelo encerramento das fábricas, um furacão tão devastador em Flint, Michigan, quanto o Katrina em Nova Orleães. Em vez da América da igualdade de oportunidades, a América onde um quarto da população negra jovem está encarcerada e onde a discriminação racial continua a marcar a vida de milhões de negros e latinos.
Dada a hegemonia que, embora em declínio, os EUA ainda detêm no mundo contemporâneo, o Fórum da Esquerda é um sinal de esperança. Em primeiro lugar, porque, ao revelar-nos uma América plena de contradições, nos previne contra leituras simplistas, positivas ou negativas, deste grande país. Em segundo lugar, porque nos dá conta do fermento das lutas que estão a ser travadas para pôr termo à vertigem imperialista e belicista que tem dominado a Casa Branca nos últimos anos e aumentado a insegurança no mundo. E é animador verificar que essas lutas têm agora melhores condições de êxito do que antes. É hoje evidente que a aliança entre o partido republicano e a direita radical religiosa (evangélica) está a colapsar, com o que se abrem novos espaços para as forças democráticas. Enquanto muitos não desistem de pressionar o partido democrático a abandonar o centrismo paralizante, outros continuam a lutar pela criação de um novo partido que represente os muitos milhões de cidadãos que se não revêem em qualquer dos dois partidos. Outros ainda preferem centrar as suas energias nas lutas locais, nas cidades e nos bairros onde é possível construir formas mais transparentes e participativas da democracia e onde o orçamento participativo das cidades latino-americanas e europeias vai ganhando adeptos.
O Fórum da Esquerda é a manifestação eloquente de uma América que deixou de ter confiança nas suas soluções e no seu excepcionalismo e procura agora, e a muito custo, aprender com o resto do mundo.
Publicado na Visão em 15 de Março de 2007