terça-feira, março 15, 2016

Portugal :A Traição dos Tradutores

A traição dos tradutores

Dr. RUI LOPO

A tradução está enquadrada num sector sócio-profissional complexo e precarizado.
A sociedade portuguesa actual, entretecida de múltiplas trocas culturais com outros povos, carece de tradução e de tradutores que permitam dia a dia comunicar com o mundo, seja na urgência do noticiário em directo de um país distante acometido por uma revolução ou na longa escala temporal da repercussão literária de um clássico milenar. Urge assim debater a função social do tradutor, seja este o subcontratado externo, autor da correspondência comercial de uma multinacional, o legendador do nosso filme favorito, o anónimo que lavrou em português o manual da torradeira japonesa que utilizamos ou o académico respeitado que pacientemente terminou uma versão de um épico escandinavo. Tudo isto deve abrir a nossa sensibilidade para o direito do público leitor português à cultura, neste caso entendida como acesso ao conhecimento produzido alhures, como acesso aos textos canónicos universais, acesso às grandes obras da história da ciência, da filosofia e da literatura, assim como ao tutorial da varinha mágica, ao manual do carro ou da máquina indispensável ao nosso trabalho na oficina. As Fundações e Embaixadas têm promovido a tradução, nos limites da sua acção específica. Mas é o Estado que o terá de fazer sistematicamente através de programas específicos de apoio e regulação da tradução literária, técnica e científica. Até porque, a partir do momento em que os textos são vertidos em português, são nacionalizados, isto é, apropriados por um povo, passando a fazer parte da sua própria história. Nos últimos anos é de assinalar o decréscimo da quantidade de traduções em geral, e de obras de referência, em particular, o que poderia ser promovido e estimulado através de bolsas de tradução, concursos sempre abertos, linhas de financiamento que partissem de uma lista e de um júri, e que viabilizassem a edição e o trabalho do tradutor. Isto poderia ser feito com o auxílio diplomático das embaixadas dos países ou directamente pelo Estado português, nos casos em que isso não fosse possível. Tudo isto teria ainda a vantagem de assegurar a diversidade de contactos culturais do nosso povo, cuja influência externa quase exclusiva tem sido a anglo-saxónica, obliterando o belo preceito, da constituição ainda em vigor, da cooperação com todos os povos para a emancipação e o progresso da humanidade como objectivo da nossa política internacional. A tradução simultaneamente amplia o património cultural de língua portuguesa e assegura a comunicação com o outro. Fica o outro mais universal por passar a habitar em nós e ficamos nós mais amplos por o termos cá dentro.
Outra característica constatada nos tempos mais recentes consiste na decrescente qualidade das traduções comerciais das grandes editoras, entregues a trabalhadores sem formação ou experiência específica, a grupos avulsos de tradução, sacrificando-se assim a homogeneidade conceptual e estilística que deveria caracterizar uma obra literária coesa. A supressão dos revisores literários é outra das causas do abaixamento da qualidade dos produtos editados e mais uma consequência da precarização de cada vez mais momentos e agentes do processo de produção do livro.
As questões práticas essenciais para a resolução do problema passariam por afrontar problemas sociais que são comuns a outras profissões ou actividades precarizadas, o que passaria pela negociação social e a contratação efectiva (com obrigações de formação e especialização) dos trabalhadores de tradução e revisão. Especificamente nesta área importaria a recolocação na ordem do dia da discussão sobre a caracterização social do tradutor e da função social da tradução, distinguindo o tradutor científico, literário e comercial e procurando dignificar a profissão do tradutor em exclusividade, num momento em que o Mercado procura que a tradução seja uma actividade supletiva desempenhada por trabalhadores socialmente desprotegidos ou  a cargo de outra entidade que não a encomendadora do trabalho literário.
Há que repensar colectivamente as tabelas de pagamento de referência atendendo à língua de origem e à especificidade de género do texto a traduzir ou retroverter e em outros modos de enquadrar e proteger estes trabalhadores, cada vez mais reduzidos a tarefeiros precários sem qualquer vínculo, vendedores de peças ocasionais a preços cada vez mais reduzidos, sem auferirem quaisquer direitos de autor, nem beneficiarem dos lucros que o seu trabalho venha a produzir ao longo do tempo.
Haveria ainda que apontar para a criação de instrumentos sociais de enquadramento da luta dos tradutores, dinamizando associações profissionais de classe de feição mais ou menos sindical. A exploração de que são alvos aqueles que da tradução se ocupam também depende da sua dispersão e incapacidade de reivindicação organizada. Na mesma ordem de considerações se deve pensar o problema da revisão de texto, cada vez mais suprimida do processo editorial, reduzida à mera correcção automática dos documentos, à revisão feita pelo próprio autor ou por outros trabalhadores não especializados, ou imposta em metas impossíveis de cumprir. Tenho espalhado este desafio: reparem com atenção nas etiquetas e nas embalagens dos produtos importados que consumimos, seja um pacote de café ou um rótulo disto ou daquilo: Constatem como são confusas tantas traduções, feitas, no melhor dos casos, por tarefeiros assoberbados e sem formação ou experiência específica, linguística e literária: mas o mais comum é que sejam traduções automáticas feitas por computador e sem serem sequer revistas. As multinacionais poupam em tudo o que seja humano, já se sabe.
Segundo um adágio clássico, desconfiava-se antanho daquele que, por traduzir, poder sempre trair o espírito ou a letra do dito ou escrito original que trasladava… bem se pode agora afirmar que todos os dias são os tradutores que são traídos na sua dignidade profissional e elementares direitos sociais.

[Uma versão ligeiramente mais curta deste texto foi publicada no número 11, de Março de 2016, da revista Esteiro]

Porto , Portugal Assistente social homenageado deixou medalha no Parlamento como protesto

O assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã, no Porto, que foi nesta terça-feira homenageado na Assembleia da República propôs trocar a medalha de ouro por políticas que não causem mais estrago na vida dos que deixaram de dar lucro. José António Pinto foi um dos homenageados no âmbito do Prémio Direitos Humanos, anualmente entregue pela Assembleia da República, tendo aproveitado para dedicar a medalha de ouro dos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aos seus utentes e aos seus pobres. Perante uma plateia de várias dezenas de pessoas, entre a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, o júri do prémio e vários deputados, o assistente social disse estar disposto a trocar aquela medalha de ouro por outro desenvolvimento económico. “Deixo ficar esta medalha no Parlamento se os senhores deputados me prometerem que, futuramente, as leis aprovadas nesta casa não vão causar mais estragos na vida daqueles que, por terem deixado de dar lucro, são hoje considerados descartáveis”, disse José António Pinto, tendo recebido um forte aplauso. Aproveitou para lembrar que enquanto fala, mais de 120 mil pessoas deixaram já Portugal, cerca de meio milhão de crianças perdeu o abono de família, 140 mil jovens estão desempregados e a maior parte dos idosos recebem uma reforma “miserável”. “Quero emprego com direitos para criar riqueza, quero que a dignidade do homem seja mais valorizada do que os mercados, quero que o interesse colectivo e o bem comum tenham mais força do que os interesses de meia dúzia de privilegiados”, defendeu, tendo sido novamente muito aplaudido. O outro homenageado com a medalha de ouro, Farid Walizadeh, um jovem refugiado afegão que chegou sozinho a Portugal, disse que a medalha representa a sua vida e todo o caminho que fez. “Neste país encontrei pessoas que me ajudaram muito. Sonho reunir toda a minha família em Portugal e sonho também ter um clube que me apoie a nível profissional no boxe para poder ir aos Jogos Olímpicos de 2016, no Brasil”, pediu. O Prémio Direitos Humanos foi este ano atribuído à Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social (Fenacerci), cuja presidente defendeu que, mais do que falar, importa convergir esforços para que as pessoas com deficiência tenham igualdade de oportunidade. “Reconhecer os direitos não chega, é preciso que as pessoas os possam exercer e, para que isso aconteça, é fundamental que sejam previamente garantidas condições para que a cidadania esteja ao alcance de todas as pessoas sem excepção”, sublinhou Julieta Sanches. O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias disse, por seu lado que “a pobreza continua a ser uma realidade que atenta contra os direitos humanos”. “Simultaneamente, este é também um tempo de mais solidariedade, de mais generosidade e de busca por mais justiça social, em que o exemplo de quem milita por estes valores deve ser destacado”, disse Fernando Negrão, em nome do júri. A presidente da Assembleia da República aproveitou para homenagear “aqueles que levam o coração a toda a parte” e lutam contra o conformismo e a desistência.