Entrevista da semana: Mafalda: certeza do amor ao próximo
Assistente social Mafalda Sparapan leva diariamente para o trabalho uma filosofia: todos merecem novas chances de viver
Daiana Dalfito
Mafalda Sparapan tem 62 anos e metade deles foi dedicados ao serviço social. Ela é mais do que uma mão amiga para seus amigos, filhos, netos e bisnetos, já que estende seus afagos e carinhos, sejam eles em palavras ou gestos, a pessoas que sequer conhece, mas ama. No Serviço de Moléstias Infecciosas (SMI) onde trabalha, cerca de 800 pessoas portadoras de HIV passam todos os meses por suas mãos.Em sua vida, dentro e fora do SMI, enfrentou preconceitos e criou com cuidado os filhos que lhe deram uma família numerosa. É meio assim ‘mãezona’, tem certeza da bondade das pessoas e crê que todos merecem novas chances e cuidados. Um dia, um de seus assistidos, usuário de drogas, feriu o irmão com uma faca. O rapaz procurou Mafalda para ter notícias do ferido por várias vezes; em uma delas, nas mãos escondidas das costas, trazia um pequeno ramalhete de flores colhidas no mato. O gesto diluiu qualquer dúvida que pudesse pairar pelos pensamentos da assistente social.
Ela acredita nas pessoas, seus próximos. Tempos depois deu o pontapé inicial – e muitos outros – para a criação e manutenção da Sociedade de Apoio a Pessoa com Aids de Bauru (Sapab) onde atuou como presidente por 12 anos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista ao JC. Jornal da Cidade:
Como a senhora se interessou pelo serviço social?
Mafalda Sparapan - Eu me casei muito nova, com 16 anos, e na época não havia concluído meus estudos. Tinha muita vontade de voltar a estudar e após ter meus filhos, eles ainda bem crianças, eu me interessei pela odontologia. Prestei dois vestibulares, mas não consegui passar já que tinha feito “madureza”, hoje o chamado Supletivo. Eu sentia a necessidade de fazer algo urgente, certo dia li uma reportagem sobre serviço social e gostei do que eu havia lido. Resolvi fazer o curso, na época eu tinha quase 27 anos, entrei da faculdade em 1972 e depois de três anos estava formada.
JC – Ao sair da faculdade a senhora veio trabalhar diretamente no SMI?
Mafalda – Não. Minha trajetória começou no Albergue Noturno, lá eu estagiei e fui contratada. Fiquei no albergue cerca de dois anos, depois fui trabalhar na Maternidade Santa Isabel, logo após sua inauguração. Da maternidade fui para o Hospital de Base (HB), onde fiquei cerca de seis anos. Logo depois, passei a prestar assistência ao Hospital Psiquiátrico da Sociedade Beneficente Cristã e de lá vim para a Secretaria de Saúde.
JC – Há quanto tempo trabalha no SMI?
Mafalda – Aqui, eu completo em setembro 17 anos. São 32 de profissão.
JC – Dos lugares onde a senhora trabalhou, qual foi o mais desafiador?
Mafalda – Quando eu trabalhava no Hospital Psiquiátrico Masculino, também prestava serviço no Hospital Psiquiátrico Infantil do Lar dos Desamparados. Foram nove meses, os piores da minha vida. Eu não conseguia me acostumar , doía muito ver aquela criançada com problemas sérios. Foi uma “gestação”, quando eu saí era como se eu tivesse tirado algo pesado de dentro de mim.
JC – A senhora foi uma das pioneiras na cidade no cuidado de portadores do vírus HIV?
Mafalda – Eu diria que sim. Houve um trabalho anterior ao nosso, mas por alguma razão não foi para frente. Esse convite para o projeto de tratamento de seropositivos caiu de bandeja para mim. Porque eu já estudava alguma coisa sobre o assunto e sabia que a maioria dos profissionais não queria trabalhar com a doença por medo, isso entre 1988 e 1989. Eu já manifestava uma vontade de trabalhar como voluntária e de repente, não mais que de repente fui chamada. Não sabia como estruturar um trabalho, foi cara, coragem, bom-senso e técnicas de Serviço Social.
JC – Desses tantos anos de trato com os portadores do HIV, conte um caso difícil e um que tenha deixado a senhora gratificada.
Mafalda – São tantos. Eu acho que se consegui passar algo nesses tantos anos trabalhando com soropositivos, eu ganhei muito mais. São lições de vida. Quando começamos a trabalhar com a aids no final da década de 80, o paciente tinha um diagnóstico de HIV, rapidamente ele desenvolvia a aids e mais rapidamente ainda ia a óbito. Não existia o famoso coquetel (anti-retrovirais) e os medicamentos eram apenas contra as chamadas infecções oportunistas. Era muito triste a perda dos pacientes e a primeira lição que eu recebi, de como havia de me comportar, foi de um rapaz que começou a fazer o acompanhamento conosco no (SMI) e oito meses depois veio a falecer. Eu acompanhei todo o desenvolvimento da doença e sempre tive o hábito de visitar os pacientes. Esse moço estava muito mal, caquético com 25 anos, e me pediu para que eu preparasse a mãe dele, porque sabia que não iria agüentar viver por muito tempo. Eu pensei dois segundos e fui conversar com a mulher, busquei tudo o que eu tinha e não tinha em mim e ela se reconfortou. No dia seguinte o rapaz faleceu e eu não estava preparada para a morte. Ainda no velório deste rapaz, a mãe dele me apresenta um outro moço soropositivo que ela sabia, iria precisar de minha ajuda. Eu aprendi que tudo o que eu podia fazer precisava ser feito enquanto a pessoa estivesse viva e que assim que ela partisse eu deveria direcionar meus cuidados a outra pessoa.
JC – Quais foram as mudanças que as senhora viu dentro do serviço social?
Mafalda – O serviço social é um trabalho que trata de seres humanos, cuida para que possam adentrar uma sociedade como cidadãos. Houve um período em que o principal alvo era a promoção do indivíduo e não a assistência. O serviço social começou com as irmãs de caridade com um caráter de benemerência e nos anos 70 tentava-se tirar essa aura da profissão. O assistente social era visto como “a moça que é paga pela Estado para ter dó do pobre”, então, havia uma vontade de que a assistência não estivesse ligada ao serviço social. Hoje o trabalho do assistente social é visto como de assistência ligada à promoção, porque como você pode promover alguém que se encontra em condições precárias de vida?
Hoje, o serviço social ganhou espaço e nada deve a outras profissões, o profissional se aperfeçoou e trabalha em diversas esferas.
JC – A senhora crê que sem um abraço, um aperto de mão o atendimento a pessoas portadoras do HIV ou que padeçam de outras doenças seria mais difícil?
Mafalda – Creio que seria quase impossível conseguir certos tipos de aproximações e até melhoras. Acho que nenhuma pessoa gosta de ser tratada como objeto e nesses anos todos de trabalho percebi que dar a mão, o abraço, o beijo, o colo é importante. Porque tratar uma pessoa friamente, administrativamente, não permite que vocês estabeleça elos e vínculos. Para todas as doenças, mas especialmente para o HIV, esse laço de afetividade facilita a adesão ao tratamento e até as mudanças que possam ocorrer na vida das pessoas. Esse toque é o mesmo que dizer: você é igual a mim, somos irmãos. Eu não conseguiria trabalhar numa situação como a nossa – com portadores de HIV – que envolve desconfiança e preconceitos, se não fosse desta forma.
JC – Sobre a fundação da Sapab, como foi?
Mafalda – Nós (Mafalda e o médico Marcelo Pesce Gomes da Costa) começamos o trabalho em 1990 e a conhecer a realidade dos soropositivos, na época quase todos usuários de drogas e homossexuais. Porque a aids apresentou no correr dos anos diferentes fases da doença em si e dos doentes. Na época, era grande a falta de leitos para os soropositivos, apenas dois no HB, e muitas vezes os pacientes internados por problemas de saúde continuavam internados por problemas sociais. Nossa equipe já tinha ouvido falar de casas de apoio a portadores de HIV em São Paulo e nossa primeira idéia foi reunir as famílias, as mães, e criar um grupo e um abrigo e nós daríamos apoio técnico. Começamos várias vezes, mas a cada morte de um dos filhos, o grupo se desetruturava. Um dia quase vimos um de nossos pacientes morrer por falta de leitos e eu decidi tomar a frente do grupo. Procuramos, pessoas para nos ajudar e casas e encontramos uma para alugar no início da avenida Castelo Branco. A casa estava mobiliada e pronta para abrir suas portas, quando a dona do imóvel decidiu não mais alugar a casa para um abrigo de ‘aidéticos’. Foi um desespero e acabamos indo para uma casa no Parque Jaraguá, cedida pelo ‘seo’ Paiva (do Hospital do Paiva), onde hoje ainda é a casa de apoio da Sapab. Foram dois anos de luta, muita água passou por debaixo da ponte.
JC – Como foi a infância da senhora?
Mafalda - Foi boa, sem muitas riquezas, mas cheia de amor e carinho. Todos os dias na hora do almoço, meu pai chegava cantando para mim “Que beijinho doce que ela tem/ Depois que eu beijei ela nunca mais amei ninguém”. Minha mãe era costureira e trabalhava comandando a casa enquanto ia a São Paulo tratar de sua saúde. Ele era marceneiro e foi desenganado, acreditavam que ele tinha um câncer na laringe, mas não era isso. Minha mãe era enérgica, mas eu agradeço a ela e meu pai por todos os bons exemplos, foram os melhores pais que eu poderia querer.
JC – Como é a Mafalda em família?
Mafalda – Sou mãezona, mas sou enérgica. Veja bem, casei com 16 anos, aos 30 me desquitei e divorciei de meu marido e eu sou da época que se carregava uma tabuleta nas costas: “Desquitada”. Sempre falei para os meus filhos, ninguém vai bater nas minhas costas e dizer que eu os criei bem se vocês se tornarem boas pessoas, mas se você aprontarem alguma coisa as pessoas vão dizer: “Mãe desquitada não sabe criar os filhos”.
JC – Como a senhora trata o preconceito?
Mafalda – Acho que hoje o preconceito aparece de maneira mais velada. Por exemplo, depois que me separei, fiquei um ano sem sair de casa. No inverno eu fazia rondas noturnas para recolher mendigos das ruas, um dia chegando de uma das rondas à 1h da madrugada, “pá” o vizinho abriu a janela. Eu pensei: estou trabalhando, mas ele vai dizer que eu cheguei tarde porque estava passeando, então resolvi passear mesmo. Comecei a aceitar os convites das minhas amigas para ir às serestas.JC – Como a senhora vê o Brasil e Bauru? O que falta?Mafalda – Acho que falta educação, religião, respeito e família. Esse tirar proveito dos outros, essas barbaridades que nossos governantes aprontam é uma lástima. Essa violência e essa banalização da vida vem da falta de respeito e amor, parece que a vida do outro deixou de ter significado.
PerfilNome: Mafalda Sparapan
PerfilNome: Mafalda Sparapan
Nascimento: 13 de fevereiro de 1945
Natural de: Bariri (SP)Hobby: JardinagemTime do coração: PalmeirasFilme preferido: “Perfume de Mulher” com direção de Martin Brest e Al Pacino no papel principal (1992).
Nota 10: Para as Organizações Não-Governamentais (ONGs) que trabalham com crianças fora do horário de aula, em atividades esportivas, culturais e voltadas ao meio ambiente.
Especial Mulher
Dedicação à assistência de pacientes com câncer e aids
Michelle Roxo
Na área de assistência aos portadores de HIV, a presidente da Sociedade de Apoio a Pessoas com Aids de Bauru (Sapab), Mafalda Sparapan, tem desenvolvido nos últimos anos um importante trabalho em Bauru.
Dedicação à assistência de pacientes com câncer e aids
Michelle Roxo
Na área de assistência aos portadores de HIV, a presidente da Sociedade de Apoio a Pessoas com Aids de Bauru (Sapab), Mafalda Sparapan, tem desenvolvido nos últimos anos um importante trabalho em Bauru.
A instituição nasceu em 1992, numa época em que o tratamento da aids ainda era bastante precário e o número de pacientes crescia ano a ano. “Muitas vezes a gente tinha doentes com necessidades sociais, com problemas sociais, ficando no Hospital (de Base), ocupando esses leitos. Foi daí que surgiu a idéia de criar a uma casa de apoio”, afirma.Mafalda, que trabalhava na época no serviço de assistência aos portadores do HIV da Secretaria Municipal de Saúde, atuou diretamente no projeto de criação da casa de apoio da Sapab. Atualmente, a entidade abriga 16 pacientes, sendo nove crianças e seis adultos. Além disso, na assistência domiciliar, a sociedade atende 93 famílias. “Nós também atendemos com cestas básicas as famílias que são carentes, além de oferecer roupas e medicação que não é fornecida pela rede pública”, diz.Outra mulher que está à frente de um importante trabalho na área assisten-cial é a presidente da Associação Bauruense de Combate ao Câncer, a professora de psicologia Lyenne Berriel Cardoso. Ela começou a atuar na entidade, criada na década de 80, como voluntária e há 15 anos ocupa a presidência.
A associação atende cerca de 250 pacientes aos mês, oferecendo serviço na área médica, psicológica e social. “O trabalho é feito individualmente com cada paciente. Eles passam pelo serviço social e têm todo o atendimento que precisam, como encaminhamento para exames, remédios, roupas, cestas especiais de alimentos, entre outras”, diz.Segundo Lyenne, o tratamento ao câncer requer o enfrentamento de grandes desafios, como a precocidade do diagnóstico, a adesão ao tratamento e o suporte e apoio aos pacientes e seus familiares. “O enfrentamento desses desafios é o objetivo da Associação Bauruense de Combate ao Câncer”, diz.
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