CPIHTS PUBLICA OBRA
Corpo Sexualidade e Violência Sexual
Análise e Intervenção Social
da Profª Marlene Braz Rodrigues
Dando início às comemorações dos seus quinze anos de actividade na investigação em Serviço Social, o Centro Português de Investigação em História e Trabalho Social, apresentará em breve
a obra acima referida, da Professora doutora em Serviço Social Marlene Braz Rodrigues.
Como afirma a autora na sua introdução ...
".... Perfilhando a ideia de Costa Santos (1998) este estudo, defende, tal como ele, que a Medicina Legal não se esgota na sua vertente forense, nem se pode reduzir apenas ao estatuto de ciência auxiliar do direito, ou a um instrumento técnico-científico do sistema judiciário que se esgote no mero acto pericial. A Medicina Legal deve ter uma função eminentemente social que excede a área da administração da justiça. A ideia de Medicina Legal que se defende, pretende quebrar o isolamento em que esta ainda se encontra, criando novos elos de ligação à comunidade, uma articulação e estreitamento de relações com outras disciplinas e instituições, uma nova dinâmica de participação na rede comunitária, em suma, uma Medicina Legal junto do cidadão e do seu quotidiano. De facto, só assim se pode conceber o Serviço Social nos Institutos de Medicina Legal.
Foi precisamente com este espírito que, no início de 1994, a minha actividade profissional (Assistente Social) se centrou no Atendimento das Vítimas de Violência sexual, no Serviço de Clínica Médico-Legal (CML) do Instituto de Medicina Legal de Lisboa (IMLL), actividade que mantive até meados de 1996 e que retomei em 2001 até ao presente momento.
A entrevista de ajuda e posterior acompanhamento e/ou encaminhamento no âmbito da CML traduziu-se numa prática importante com as crianças, jovens e mulheres vítimas de violência sexual (clientela muito fragilizada, traumatizada, dependente, culpabilizada, envergonhada, etc.) que, até chegar ao IMLL, já percorrera um circuito não raras vezes penoso.
Este tipo de actividade profissional possibilitou a tomada de consciência de um certo número de questões, tais como o crescimento de exames periciais efectuados no IMLL, as queixas da clientela em relação ao atendimento desadequado de que tinham sido vítimas, o penoso circuito institucional que frequentemente vezes provocava uma nova vitalização, i.e., a dupla-vitimização ou a vitalização secundária, o sofrimento das vítimas, etc.
Na minha prática profissional, não raras vezes, fui confrontada com situações algo semelhantes às de um filme de larga divulgação comercial, que de algum modo, contempla alguns aspectos do objecto da minha reflexão teórica. Trata-se do filme The Accused (Os Acusados), realizado por Jonathan Kaplan em 1988 e que proporcionou a Jodie Foster um Óscar. Vale sobretudo como documento sociológico, baseando-se o seu argumento num caso de violação de uma jovem americana, por um grupo de indivíduos da comunidade portuguesa de New Jersey, nos E.U.A., cujos ecos chegaram até nós, prestando-se a múltiplas leituras.
Procurando preencher o vazio das imagens com a “fraca” força das palavras, dir-se-á que, certa noite, Sarah (protagonizada por Jodie Foster) entra num bar onde toma uns copos, põe um disco na juke box e começa a dançar, entregando-se ao ritmo da música, numa movimentação não isenta de uma certa carga erótica. O que poderia não passar de um momento sem consequências, é transformado pela rapaziada circundante, em violação colectiva, sobre a mesa de bilhar, perante uma assistência, que incita e aplaude.
É este o ponto de partida para se enveredar por uma breve análise do tema, tentando percorrer o imaginário em que se apoiam determinadas formas de condenação e de julgamento da mulher-vítima. Esse imaginário é estimulado, a um tempo, por uma certa cumplicidade social, que conduz à culpabilização da vítima, e por uma espécie de solidariedade para com o agressor[1].
As mentalidades, atitudes e comportamentos retratados no filme “Os Acusados” põem em causa a própria noção de liberdade sexual, fundamento do tão apregoado bem jurídico tutelado.
Mas voltemos ao filme. Tarde da noite, numa cabina telefónica pública, um jovem contacta a polícia, relatando, num tumulto de palavras, ter visto três ou quatro homens a violarem uma jovem num bar próximo. Entretanto, a jovem, ferida e cambaleante, sai a correr do bar, acenando, em jeito de apelo desesperado, aos raros automobilistas que circulam àquela hora tardia. Um camionista pára e transporta-a ao hospital mais próximo.
Quando esta se encontra a ser examinada por uma médica do Serviço de Urgência, eis que surge uma assistente social do Centro de Apoio a Mulheres Vítimas de Violação para lhe assegurar ajuda. Uma outra mulher, promotora pública, vai registando as palavras debitadas pela jovem num discurso fragmentário, fruto da emoção e perplexidade que a atormentam. É a justiça que assim inicia a sua caminhada.
Quatro mulheres na sala de observações do hospital: três movidas por um compromisso profissional e outra - a vítima - decidida a fazer valer o seu direito como mulher e cidadã, denunciando os homens que a violaram e lhe devassaram o corpo e a alma. A médica, com a frieza profissional de quem está habituado a lidar com situações de vida ou de morte sem se envolver emocionalmente, prossegue o seu exame, palpa-a e fotografa-lhe as lesões que lhe marcam o corpo. A Promotora Pública questiona-a sobre o que aconteceu e, com idêntica frieza profissional, quer saber se o vestuário que ela usava era adequado. A assistente social acompanha a vítima com a mesma rotina de sempre: mais um caso, mais uma vítima.
Um segundo grupo de profissionais, constituído por juristas, homens - dois agentes do Gabinete do Promotor Público e três outros que defendem três dos violadores identificados e detidos pela polícia - sustentam a inutilidade de enveredar por uma acusação de violação em primeiro grau, por considerarem praticamente impossível obter a sua condenação nessa base. A sua leitura dos factos é unânime: não existindo testemunhas, não é possível provar semelhante acusação.
De facto, quer o dono, quer os frequentadores do referido bar, negam ter presenciado qualquer acto de violência. Na sua versão, tudo não passara de um momento de diversão, de um show proporcionado espontaneamente por Sarah, que dançara para diversão e gozo dos homens que a possuíram. Um simples caso de costumes!
Ainda que Sarah exiba lesões no rosto, no pescoço, nos pulsos e nas nádegas, indícios da imobilização imposta pela força, e da violência sexual a que fora sujeita, os advogados de defesa tentam negociar com a Promotora Pública, uma acusação com base num crime de agressão, que excluía a violação, aceitando que os agressores fossem condenados em nove meses de prisão efectiva. A Promotora Pública, porém, vacila: houve agressão física, tratamento hostil, mas violação não.
Sarah tem conhecimento do resultado do seu caso através dos noticiários. Não fora sequer ouvida sobre os fundamentos e finalidade de semelhante negociação (dos advogados de defesa dos agressores com a Promotora Pública). A divulgação pública da imagem de Sarah é a seguinte:
· “mulher da noite”, que bebe e fuma droga para relaxar;
· usa vestuário elegante e vistoso, com o propósito de realçar a sua beleza física;
· frequenta bares em vez de ficar em casa;
· é pobre e sem suporte familiar conhecido;
· vive maritalmente com um homem acusado de posse de drogas ilícitas - ela própria havia sido surpreendida com uma pequena quantidade de droga pertencente a uma amiga a quem ela ajudara na mudança de casa.
A discordância é clara: Sarah sustenta repetidamente ter sido vítima de violação e agressão perpetradas por vários homens; os agressores indiciados, e outros clientes presentes no bar, afirmam que ela mente, que se exibiu e provocou os circunstantes, acabando por se entregar, voluntária e sucessivamente, a quantos a desejaram.
Ainda que Sarah insista que a imobilizaram pela força, manietando-lhe os pulsos, tapando-lhe os olhos e a boca, e a penetraram sexualmente... os homens inquiridos negam o uso da força e a violação. O NÃO da mulher é encarado como uma encenação e não como expressão da sua vontade, dos seus desejos, da sua liberdade, do seu direito a dizer NÃO. É uma voz, isolada e débil, contra muitas outras que, em uníssono, clamam o contrário.
Mas que tem isto a ver com a realidade portuguesa? Ainda que o caso sumariamente relatado se reporte a uma realidade sociocultural algo diversa, diria que a questão de base se coloca com idêntica acuidade.
Entre nós, o espaço onde mais frequentemente se faz ouvir pela primeira vez a voz da vítima é o espaço policial – a Esquadra da PSP, o Posto da GNR, a Delegação da Polícia Judiciária. É aí que se inicia (ou não) uma caminhada, que pode tornar-se num longo calvário, marcado pelo acto da denúncia, o interrogatório, o preenchimento de formulários intermináveis, o encaminhamento para o hospital ou para o Instituto de Medicina Legal, e, uma vez mais, o interrogatório, o exame físico, a recolha de amostras de fluidos orgânicos, em busca da “prova” pericial que possa confirmar, ou não, a queixa apresentada. E depois o inquérito e, com ele, novos interrogatórios, a devassa da vida privada, a exposição da intimidade.
E cá, como nos E.U.A., também se verifica o confronto entre a voz singular, isolada, fragilizada, de quem se apresenta como vítima, e a quase constante ausência de testemunhas, ou o silêncio cúmplice de quem tem algo a esconder ou, pura e simplesmente, não se quer envolver num caso de polícia. Daí a especial importância da instância médico-legal e da avaliação pericial, que poderá fornecer a prova material de um crime onde escasseiam outros elementos de prova – uma prova feita de marcas no corpo e de vestígios orgânicos, mas também de elementos psicológicos nem sempre devidamente pesquisados ou valorizados neste contexto. Uma prova que, se encontrada, poderá levar o Tribunal a decidir o caso a favor da vítima e a condenar o agressor – o palco derradeiro em que soarão, uma vez mais, as vozes discordantes de quem se diz vítima e de quem nega ser agressor.
Quem, legitimamente, poderá permanecer indiferente ao drama das muitas Saras feridas no corpo e marcadas na alma, que clamam por justiça? Das Saras atormentadas por um corpo devassado, por um corpo que se tornou o seu pior inimigo?
Daí a urgência da denúncia, da construção de canais que possam veicular e amplificar a voz das vítimas, da estreita colaboração dos profissionais que intervêm nesta área, em nome das vítimas e da justiça a que têm direito!
A violência sexual constitui uma preocupação social e um dos objectos privilegiados dos meios de comunicação social, mas ainda hoje, desconhece-se, em grande parte, as suas causas, processos e consequências. Apesar de não constituir, em si mesma, um facto recente, a violência sexual tem vindo a suscitar, nos países ocidentais, uma preocupação crescente por parte da opinião pública e de profissionais dos vários ramos do saber. Também este problema suscita as questões de sempre: o quê? Quem? Como? Quando? Onde? Porquê?
Não se conhecendo bem os seus contornos, a sua possível evolução e as alternativas para este problema, eis-nos perante a necessidade de proceder a uma análise mais aprofundada sobre esta problemática. O facto de se pretender centralizar o presente estudo num processo de vitalização no seu sentido mais amplo (não residual, i.e., incidindo, tão-só, no crime sexual), tornou-se uma questão essencial e, simultaneamente, inquietante. Esta sensação desconfortável e simultaneamente aliciante só pôde ser um pouco mitigada a partir do momento em que se definiu o objectivo geral do presente estudo e que consistiu em identificar e caracterizar os principais vectores que configuram a violência sexual na contemporaneidade. Como não se pode esgotar a complexidade da violência sexual na actual experiência analisando apenas os contributos das abordagens do Direito, da Psicologia, da Vitimologia ou da Criminologia, porque estas disciplinas não têm em conta determinados fenómenos que ocorrem em espaços mais amplos que devem ser reabertos e analisados, o presente estudo procura mostrar que antes da vitalização primária, existe uma vitalização genérica que pode reflectir-se na vitimização actualizada (na medida em que pode potencializar a vitalização primária).
[1] Ainda que alguns considerem radical este tipo de observações, o facto é que ela expressa a cultura de uma sexualidade violenta, silenciosa, e disseminada na nossa sociedade. Deste modo, o tão apregoado bem jurídico tutelado – a liberdade sexual, nunca será uma realidade se as mentalidades, atitudes e comportamentos continuarem a ser semelhantes aos retratados no filme “Acusados”.
".... Perfilhando a ideia de Costa Santos (1998) este estudo, defende, tal como ele, que a Medicina Legal não se esgota na sua vertente forense, nem se pode reduzir apenas ao estatuto de ciência auxiliar do direito, ou a um instrumento técnico-científico do sistema judiciário que se esgote no mero acto pericial. A Medicina Legal deve ter uma função eminentemente social que excede a área da administração da justiça. A ideia de Medicina Legal que se defende, pretende quebrar o isolamento em que esta ainda se encontra, criando novos elos de ligação à comunidade, uma articulação e estreitamento de relações com outras disciplinas e instituições, uma nova dinâmica de participação na rede comunitária, em suma, uma Medicina Legal junto do cidadão e do seu quotidiano. De facto, só assim se pode conceber o Serviço Social nos Institutos de Medicina Legal.
Foi precisamente com este espírito que, no início de 1994, a minha actividade profissional (Assistente Social) se centrou no Atendimento das Vítimas de Violência sexual, no Serviço de Clínica Médico-Legal (CML) do Instituto de Medicina Legal de Lisboa (IMLL), actividade que mantive até meados de 1996 e que retomei em 2001 até ao presente momento.
A entrevista de ajuda e posterior acompanhamento e/ou encaminhamento no âmbito da CML traduziu-se numa prática importante com as crianças, jovens e mulheres vítimas de violência sexual (clientela muito fragilizada, traumatizada, dependente, culpabilizada, envergonhada, etc.) que, até chegar ao IMLL, já percorrera um circuito não raras vezes penoso.
Este tipo de actividade profissional possibilitou a tomada de consciência de um certo número de questões, tais como o crescimento de exames periciais efectuados no IMLL, as queixas da clientela em relação ao atendimento desadequado de que tinham sido vítimas, o penoso circuito institucional que frequentemente vezes provocava uma nova vitalização, i.e., a dupla-vitimização ou a vitalização secundária, o sofrimento das vítimas, etc.
Na minha prática profissional, não raras vezes, fui confrontada com situações algo semelhantes às de um filme de larga divulgação comercial, que de algum modo, contempla alguns aspectos do objecto da minha reflexão teórica. Trata-se do filme The Accused (Os Acusados), realizado por Jonathan Kaplan em 1988 e que proporcionou a Jodie Foster um Óscar. Vale sobretudo como documento sociológico, baseando-se o seu argumento num caso de violação de uma jovem americana, por um grupo de indivíduos da comunidade portuguesa de New Jersey, nos E.U.A., cujos ecos chegaram até nós, prestando-se a múltiplas leituras.
Procurando preencher o vazio das imagens com a “fraca” força das palavras, dir-se-á que, certa noite, Sarah (protagonizada por Jodie Foster) entra num bar onde toma uns copos, põe um disco na juke box e começa a dançar, entregando-se ao ritmo da música, numa movimentação não isenta de uma certa carga erótica. O que poderia não passar de um momento sem consequências, é transformado pela rapaziada circundante, em violação colectiva, sobre a mesa de bilhar, perante uma assistência, que incita e aplaude.
É este o ponto de partida para se enveredar por uma breve análise do tema, tentando percorrer o imaginário em que se apoiam determinadas formas de condenação e de julgamento da mulher-vítima. Esse imaginário é estimulado, a um tempo, por uma certa cumplicidade social, que conduz à culpabilização da vítima, e por uma espécie de solidariedade para com o agressor[1].
As mentalidades, atitudes e comportamentos retratados no filme “Os Acusados” põem em causa a própria noção de liberdade sexual, fundamento do tão apregoado bem jurídico tutelado.
Mas voltemos ao filme. Tarde da noite, numa cabina telefónica pública, um jovem contacta a polícia, relatando, num tumulto de palavras, ter visto três ou quatro homens a violarem uma jovem num bar próximo. Entretanto, a jovem, ferida e cambaleante, sai a correr do bar, acenando, em jeito de apelo desesperado, aos raros automobilistas que circulam àquela hora tardia. Um camionista pára e transporta-a ao hospital mais próximo.
Quando esta se encontra a ser examinada por uma médica do Serviço de Urgência, eis que surge uma assistente social do Centro de Apoio a Mulheres Vítimas de Violação para lhe assegurar ajuda. Uma outra mulher, promotora pública, vai registando as palavras debitadas pela jovem num discurso fragmentário, fruto da emoção e perplexidade que a atormentam. É a justiça que assim inicia a sua caminhada.
Quatro mulheres na sala de observações do hospital: três movidas por um compromisso profissional e outra - a vítima - decidida a fazer valer o seu direito como mulher e cidadã, denunciando os homens que a violaram e lhe devassaram o corpo e a alma. A médica, com a frieza profissional de quem está habituado a lidar com situações de vida ou de morte sem se envolver emocionalmente, prossegue o seu exame, palpa-a e fotografa-lhe as lesões que lhe marcam o corpo. A Promotora Pública questiona-a sobre o que aconteceu e, com idêntica frieza profissional, quer saber se o vestuário que ela usava era adequado. A assistente social acompanha a vítima com a mesma rotina de sempre: mais um caso, mais uma vítima.
Um segundo grupo de profissionais, constituído por juristas, homens - dois agentes do Gabinete do Promotor Público e três outros que defendem três dos violadores identificados e detidos pela polícia - sustentam a inutilidade de enveredar por uma acusação de violação em primeiro grau, por considerarem praticamente impossível obter a sua condenação nessa base. A sua leitura dos factos é unânime: não existindo testemunhas, não é possível provar semelhante acusação.
De facto, quer o dono, quer os frequentadores do referido bar, negam ter presenciado qualquer acto de violência. Na sua versão, tudo não passara de um momento de diversão, de um show proporcionado espontaneamente por Sarah, que dançara para diversão e gozo dos homens que a possuíram. Um simples caso de costumes!
Ainda que Sarah exiba lesões no rosto, no pescoço, nos pulsos e nas nádegas, indícios da imobilização imposta pela força, e da violência sexual a que fora sujeita, os advogados de defesa tentam negociar com a Promotora Pública, uma acusação com base num crime de agressão, que excluía a violação, aceitando que os agressores fossem condenados em nove meses de prisão efectiva. A Promotora Pública, porém, vacila: houve agressão física, tratamento hostil, mas violação não.
Sarah tem conhecimento do resultado do seu caso através dos noticiários. Não fora sequer ouvida sobre os fundamentos e finalidade de semelhante negociação (dos advogados de defesa dos agressores com a Promotora Pública). A divulgação pública da imagem de Sarah é a seguinte:
· “mulher da noite”, que bebe e fuma droga para relaxar;
· usa vestuário elegante e vistoso, com o propósito de realçar a sua beleza física;
· frequenta bares em vez de ficar em casa;
· é pobre e sem suporte familiar conhecido;
· vive maritalmente com um homem acusado de posse de drogas ilícitas - ela própria havia sido surpreendida com uma pequena quantidade de droga pertencente a uma amiga a quem ela ajudara na mudança de casa.
A discordância é clara: Sarah sustenta repetidamente ter sido vítima de violação e agressão perpetradas por vários homens; os agressores indiciados, e outros clientes presentes no bar, afirmam que ela mente, que se exibiu e provocou os circunstantes, acabando por se entregar, voluntária e sucessivamente, a quantos a desejaram.
Ainda que Sarah insista que a imobilizaram pela força, manietando-lhe os pulsos, tapando-lhe os olhos e a boca, e a penetraram sexualmente... os homens inquiridos negam o uso da força e a violação. O NÃO da mulher é encarado como uma encenação e não como expressão da sua vontade, dos seus desejos, da sua liberdade, do seu direito a dizer NÃO. É uma voz, isolada e débil, contra muitas outras que, em uníssono, clamam o contrário.
Mas que tem isto a ver com a realidade portuguesa? Ainda que o caso sumariamente relatado se reporte a uma realidade sociocultural algo diversa, diria que a questão de base se coloca com idêntica acuidade.
Entre nós, o espaço onde mais frequentemente se faz ouvir pela primeira vez a voz da vítima é o espaço policial – a Esquadra da PSP, o Posto da GNR, a Delegação da Polícia Judiciária. É aí que se inicia (ou não) uma caminhada, que pode tornar-se num longo calvário, marcado pelo acto da denúncia, o interrogatório, o preenchimento de formulários intermináveis, o encaminhamento para o hospital ou para o Instituto de Medicina Legal, e, uma vez mais, o interrogatório, o exame físico, a recolha de amostras de fluidos orgânicos, em busca da “prova” pericial que possa confirmar, ou não, a queixa apresentada. E depois o inquérito e, com ele, novos interrogatórios, a devassa da vida privada, a exposição da intimidade.
E cá, como nos E.U.A., também se verifica o confronto entre a voz singular, isolada, fragilizada, de quem se apresenta como vítima, e a quase constante ausência de testemunhas, ou o silêncio cúmplice de quem tem algo a esconder ou, pura e simplesmente, não se quer envolver num caso de polícia. Daí a especial importância da instância médico-legal e da avaliação pericial, que poderá fornecer a prova material de um crime onde escasseiam outros elementos de prova – uma prova feita de marcas no corpo e de vestígios orgânicos, mas também de elementos psicológicos nem sempre devidamente pesquisados ou valorizados neste contexto. Uma prova que, se encontrada, poderá levar o Tribunal a decidir o caso a favor da vítima e a condenar o agressor – o palco derradeiro em que soarão, uma vez mais, as vozes discordantes de quem se diz vítima e de quem nega ser agressor.
Quem, legitimamente, poderá permanecer indiferente ao drama das muitas Saras feridas no corpo e marcadas na alma, que clamam por justiça? Das Saras atormentadas por um corpo devassado, por um corpo que se tornou o seu pior inimigo?
Daí a urgência da denúncia, da construção de canais que possam veicular e amplificar a voz das vítimas, da estreita colaboração dos profissionais que intervêm nesta área, em nome das vítimas e da justiça a que têm direito!
A violência sexual constitui uma preocupação social e um dos objectos privilegiados dos meios de comunicação social, mas ainda hoje, desconhece-se, em grande parte, as suas causas, processos e consequências. Apesar de não constituir, em si mesma, um facto recente, a violência sexual tem vindo a suscitar, nos países ocidentais, uma preocupação crescente por parte da opinião pública e de profissionais dos vários ramos do saber. Também este problema suscita as questões de sempre: o quê? Quem? Como? Quando? Onde? Porquê?
Não se conhecendo bem os seus contornos, a sua possível evolução e as alternativas para este problema, eis-nos perante a necessidade de proceder a uma análise mais aprofundada sobre esta problemática. O facto de se pretender centralizar o presente estudo num processo de vitalização no seu sentido mais amplo (não residual, i.e., incidindo, tão-só, no crime sexual), tornou-se uma questão essencial e, simultaneamente, inquietante. Esta sensação desconfortável e simultaneamente aliciante só pôde ser um pouco mitigada a partir do momento em que se definiu o objectivo geral do presente estudo e que consistiu em identificar e caracterizar os principais vectores que configuram a violência sexual na contemporaneidade. Como não se pode esgotar a complexidade da violência sexual na actual experiência analisando apenas os contributos das abordagens do Direito, da Psicologia, da Vitimologia ou da Criminologia, porque estas disciplinas não têm em conta determinados fenómenos que ocorrem em espaços mais amplos que devem ser reabertos e analisados, o presente estudo procura mostrar que antes da vitalização primária, existe uma vitalização genérica que pode reflectir-se na vitimização actualizada (na medida em que pode potencializar a vitalização primária).
[1] Ainda que alguns considerem radical este tipo de observações, o facto é que ela expressa a cultura de uma sexualidade violenta, silenciosa, e disseminada na nossa sociedade. Deste modo, o tão apregoado bem jurídico tutelado – a liberdade sexual, nunca será uma realidade se as mentalidades, atitudes e comportamentos continuarem a ser semelhantes aos retratados no filme “Acusados”.
Daremos mais informações sobre este assunto num Próximo post
alfredo Henríquez
1 comentário:
Parabéns pela publicação. à autora e ao(s) editor(es). É bem necessário.
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