quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Contributos Para a Compreensão da Adopção



Contributos Para a Compreensão da Adopção*







Professor Jorge Cabral




Adoptei o Serviço Social, ou foi o Serviço Social que me adoptou? Quem adopta é quem é adoptado? Adoptar é também ser adoptado! O direito a ser amado é indissociável do direito de amar.

Sendo há uma eternidade professor em Cursos de Serviço Social, obriguei-me a ensinar o Direito não como o dogma que a ciência normativa nos transmite, mas como a tradução de uma realidade transitória em constante mutação, sistema de normas destinado a regular a convivência entre as pessoas, compatibilizando culturas, valores e as diferentes formas de ser e de estar na vida. Por essa razão, deve ser estudado em inter-relação com as demais ciências sociais. O Direito não inventa crimes, qualifica comportamentos. O Direito não cria relações jurídicas, normatiza relações sociais. O Direito deve reflectir as mudanças sócio-culturais, não podendo ignorar a realidade social e as pessoas concretas, às quais a norma se dirige.

Obviamente que sempre existiu Adopção Como sempre existiram uniões de facto ou famílias monoparentais. Crianças criadas e educadas por tias, por avós, por amas, por padrinhos, constituíram sempre situações comuns. Aliás o vocábulo “criado” que adquiriu hoje um sentido depreciativo, era há uns séculos quase um título de nobreza. Ser criado do príncipe, significava ter sido educado junto dele.


Adopções de facto acontecem ainda, e aconteciam com grande frequência. Ainda nos anos 80, uma ex-aluna pediu-me para ir falar às Amas do Bairro Alto. E lá fui eu ao encontro de uma dúzia de velhotas, que haviam criado e educado dezenas de crianças, filhas de prostitutas, as quais depois de terem pago duas ou três mensalidades, haviam desaparecido. Pobres, sem qualquer apoio, lá tinham cumprido o seu papel de Mães, compensando o parco pão com o muito afecto. O certo é que aqueles agora Homens e Mulheres, as consideravam Mães e as tratavam como tal. Obviamente que nenhuma vez havia pensado na categoria jurídica da Adopção, ou mesmo em ter ido ao Tribunal expor a situação.


Só a palavra Tribunal já metia medo. “Eu nunca entrei num Tribunal”, é vulgar ainda hoje ouvir-se como motivo de orgulho.

Mesmo como instituição jurídica, a Adopção é muito antiga, servindo objectivos religiosos, económicos ou políticos. Entendia-se na Índia “que o homem depois da sua morte passava a viver debaixo da terra e se reputava um ser feliz desde que os filhos lhe oferecessem sempre a refeição fúnebre – arroz, leite e mel – pois se essas oferendas cessassem o morto cairia em infelicidade”. Porque tal culto só podia ser prestado por um filho varão, quem não o tivesse tido, teria de optar pela Adopção (1).


Também na Babilónia e na Assíria a figura nos aparece, e aqui muito ligada a interesses económicos.


Não era do mesmo modo desconhecida a Adopção no velho Direito Hebreu, pelo qual a mulher legítima sendo estéril podia adoptar uma concubina para que esta pudesse ter filhos legítimos do marido.


É no entanto em Roma que a Adopção vai desempenhar um papel importante, cumprindo todas as três finalidades já mencionadas, a religiosa, a política e a económica.


Como sabem a família romana assentava fundamentalmente numa concepção jurídica. Pertenciam à família todos os que estivessem debaixo da autoridade do paterfamilias, o qual tinha o poder de afastar qualquer membro e de escolher e integrar quem assegurasse a continuidade dos cultos domésticos, os sacra privata. Podia ser um meio de passar de plebeu a patrício, e na época imperial, foi através da Adopção que se assegurou a sucessão do trono, Augusto adoptou Tibério e Cláudio adoptou Nero. Por outro lado, ocorriam também adopções apenas com finalidades económicas, constituindo tão somente deslocações de mão-de-obra, de uma família para a outra. ( vejase Adopção em roma).


É no Direito Romano que encontramos as duas modalidades de Adopção, a adoptio plena e a adoptio minus plena, denominações que influenciaram a nossa lei – a adopção plena e a adopção restrita. Era a adoptio plena a verdadeira adopção que integrava o adoptado na família submetendo-o à patria potestas do paterfamílias, o que não acontecia na adoptio minus plena, razão porque só esta era permitida às mulheres, todas elas também submetidas à mesma autoridade.
Com o advento do Cristianismo, a instituição jurídica Adopção vai declinando. As relações familiares passam a assentar no sacramento matrimónio e nos laços de sangue, pelo que a Adopção é considerada como algo falso ou artificial, uma imitação da natureza – “adoptio naturam imitatur”, como se escrevia então.


Durante séculos falou-se do “perfilhamento”, o qual visava fundamentalmente efeitos patrimoniais. As nossas Ordenações não referem especificamente a Adopção e o nosso primeiro Código Civil, de 1867, ignorou pura e simplesmente a figura. Aliás o seu autor o Visconde de Seabra ( vejase António Luís de Seabra ) escreveu mesmo que “ a adopção ousa criar uma paternidade fictícia a exemplo da paternidade natural… (que) não corresponde a necessidade alguma do coração humano. Quem poderá amar por ficção? Corresponderá ao desejo de transmitir a propriedade a certa pessoa predilecta? Tudo isso se pode conseguir sem necessidade de entrar no caminho tortuoso e tão contrário à razão e à natureza (2).


E assim vivemos até ao Código Civil de 1966, embora seja importante assinalar que um Decreto de 1925, permitia a entrega de menores abandonados ou desamparados a famílias adoptivas que ficavam com o encargo da sua educação, não havendo contudo qualquer alteração jurídica no estado do menor. Tratava-se no fundo de uma mera colocação familiar definitiva.


Desculpem este “chatérrimo” percurso histórico, mas sabem os meus alunos o quanto considero importante reflectir sobre o passado, ciente que as leis não modificam a cabeça das pessoas, não destroiem os preconceitos, nem conseguem alterar convicções enraízadas no mais fundo da comunidade.


Introduzida a Adopção no Código Civil de 1966, sofreu a Lei profundas alterações em 1977, 1993, 1998 e 2003, estando na forja mais uma modificação.


De acordo com os arts. 20º e 21º da Convenção sobre os Direitos da Criança, a Adopção deve ser considerada um a protecção alternativa, e deve assegurar o interesse superior da criança.


Segundo o nº 7 do art. 36º da Constituição, a Adopção é regulada e protegida nos termos da Lei, a qual deve estabelecer fórmulas céleres para a respectiva tramitação, e consigna o art. 1974º do C. Civil que a Adopção visa realizar o superior interesse da criança e só será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptando se estabelecerá um vinculo semelhante ao da filiação. As sucessivas alterações à lei, têm visado sobretudo acelerar o processo e facilitar a dispensa do consentimento, parecendo considerar a adopção plena como a panaceia para a resolução do gravíssimo problema que constitui o termos 15 mil crianças em Instituições, e todos os dias ocorrerem abandonos e maus tratos.


Se é aceite, pelo menos a nível legal, que o fim prosseguido pela Adopção é o superior interesse da criança, deve adoptar-se por solidariedade, não se entendendo assim que a lei continue a pôr o acento tónico no vínculo da filiação. Claro que a filiação adoptiva é tão legítima quanto a afiliação biológica, a qual para ser válida juridicamente necessita de ser registada. Aliás funcionando a presunção de paternidade em relação ao marido da mãe, nem toda a paternidade dita natural corresponderá à verdade biológica.


Que a criança necessita de uma família é inquestionável. Precisamos todos. De pais, de mães, de tios, de irmãos, de primos, de amigos. Até eu, tal como aquele idoso italiano, qualquer dia peço para ser adoptado…


Adoptar é apostar no Amor, no Afecto, no Carinho, palavras que a lei omite. Que será isso de vinculo de filiação. A voz do sangue? O sangue é mudo! Anteontem apareceu no meu escritório uma jovem mãe trazendo a filha de treze anos grávida de sete meses. Só há dois dias a mãe desconfiara. Quem é o pai pergunto. Não sabe o nome, só sabe que tem olhos verdes. Vamos descobrir este pai biológico? Vinculo? Que vinculo de filiação será possível estabelecer.


A Lei aposta, na Adopção Plena, no corte radical com a família biológica, dispensando o consentimento dos pais quando tenha havido confiança judicial, ou medida de promoção e protecção de confiança a pessoa ou instituição com vista a futura adopção e ainda nos casos de estarem privados do uso das faculdades mentais ou existir grave dificuldade em os ouvir, e nas situações de inibição do poder paternal, quando tiverem passado 18 ou 6 meses, sobre a sentença ou sobre o indeferimento do pedido de levantamento, sem ter existido dos próprios ou do Ministério Público, solicitação para fazer cessar a inibição. Se tivermos em consideração que a inibição pode decorrer da inexperiência, da doença ou da ausência dos pais, é minha opinião que se foi longe demais.


O consentimento é prestado perante o juiz e reportar-se-á inequivocamente à adopção plena, devendo obrigatoriamente o declarante ser esclarecido sobre o significado e os efeitos do mesmo. Torna-se necessário que os nossos juízes expliquem de forma clara aquela mãe ou aqueles pais, que nunca mais verão o filho, e que não serão informados sobre quem o irá adoptar. Devem fazê-lo claramente, para que não seja mais possível acontecer uma cena que presenciei num Tribunal, uma mulher chorava e dizia que havia pensado que a filha regressaria. Dera o consentimento para a adopção plena e não percebera.


Existe uma evidente relutância em dar os filhos para a adopção, decisão que não é bem aceite socialmente. É muito mais tolerado que a criança vá para uma Instituição, chame-se como se chamar, o antigo Asilo ou o moderno Centro de Acolhimento. Porque sempre foi assim, os meninos abandonados na roda, os órfãos, os mal tratados, os filhos da miséria ou do acaso, tiveram sempre o mesmo destino.


Diz a lei que o processo será instruído com um inquérito que deverá incidir sobre a personalidade e a idoneidade do adoptante, a sua situação familiar e económica e as razões determinantes do pedido de adopção. Nunca concordarei com esta redacção, designadamente com a ordem proposta. O principal, as razões determinantes do pedido de adopção, aparece em último lugar e no entanto, como já referimos, a adopção só será decretada quando se funde em motivos legítimos. Que são motivos legítimos não nos diz a lei? Como averiguar da capacidade de Amar e de ser Amado? Adopta-se na maior parte dos casos porque não se tem filhos. Aliás no Código de 1966, só um casal sem filhos podia adoptar plenamente. No fundo adopta-se porque ainda subsiste na comunidade o sentimento que um casal sem filhos não constitui uma família, e que esta é intemporal, não deve terminar. Queremos ter filhos porque não queremos morrer. Acreditamos que é possível eternizar o nosso nome, a nossa recordação, a nossa imagem. Sonhamos com um futuro melhor, por isso temos filhos.


Gostaria que não ficassem com a ideia que sou anti-adopção. Antes pelo contrário. A inserção numa família será sempre uma óptima solução e corresponderá à salvaguarda dos interesses da criança. Mas não será só através da agilização do processo de adopção que a problemática da criança em perigo será atenuada.


Partilho aliás da opinião da Dra. Eliana Gersão, que num brilhante ensaio intitulado “Adopção – mudar o quê?”, defende o alargamento dos pressupostos da adopção restrita, que tal como se encontra hoje na lei para pouco serve, de forma a abranger os casos de crianças cujos pais as colocaram em risco, sem no entanto violar gravemente os seus deveres parentais, pelo que se tratam de situações não enquadráveis na previsão legal. Dessa forma, coexistiriam a família adoptiva e a família biológica, exercendo os pais adoptivos o poder paternal, mas atribuindo aos pais biológicos o direito à informação sobre a evolução do filho, e mesmo o direito de visita. Conferindo ao adoptado “ um duplo estatuto familiar” também eu acredito que tal solução contribuiria apara a possibilidade de adopção de crianças hoje consideradas não adoptáveis, por não corresponderem à imagem idealizada pelos candidatos a adoptantes – bebés, brancos, dóceis e saudáveis (3).


Apostar apenas na adopção plena acentuando a ideia da filiação, sem cuidar de outras formas saudáveis de inserção familiar, na qual a solidariedade constitua o real fundamento, parece-me redutor.


Crianças abandonadas, crianças mal tratadas, crianças abusadas, crianças não amadas, crianças violentadas na sua dignidade, crianças sem direito a ser crianças. Vemos, ouvimos e lemos, como dizia o poema, e não podemos ignorar.


Cita-se sempre o art. 36º da Constituição, quando se fala de Adopção. Deve ser célere. Mas muitas vezes esquecemos os arts. 67º, 68º e 69º da mesma Constituição, todos eles impondo ao Estado uma política para a Família e para a Infância, cuja implementação tarda há já demasiado tempo. A Família, diz a Constituição, como elemento fundamental da sociedade tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros. O Estado está obrigado a organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes, que constituem valores sociais eminentes.


Entretanto, no Diário de Notícias de ontem lemos que a fome atinge 200 mil pessoas, que 3 milhões vivem com rendimentos insuficientes para ter uma vida digna, que só na Amadora existem 4.000 barracas e cerca de um milhar de crianças abandonadas. Como? De que forma podemos actuar. Porque é forçoso que assumamos as nossas responsabilidades sociais intervindo na construção de um Estado Solidário, acabando de vez com a cultura do efémero, do monólogo e do ter, e apostando na educação para o Amor e para a Felicidade.


Acredito num Mundo Melhor, de Respeito pela Dignidade Humana, no qual a Família encontre integrais condições de realização, e a Adopção seja banida do Ordenamento Jurídico, pela simples razão de não existir nenhuma criança abandonada, carenciada ou maltratada.

Utópico, eu?

Talvez!

Mas quem pode viver sem utopias?

Muito obrigado!
Jorge Cabral




Bibliografia:

1 – Apud, A. Capelo de Sousa, A Adopção/Consituição da relação de Adopção, Coimbra, 1973;

2 – Apud, Eduardo Santos, Direito da Família, Coimbra, 1999;

3 – In, Comemorações dos 35 anos do C. Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol.I, Coimbra, 2004, pag. 833 e seg.


*Conferencia Proferida na Universidade Lusófona

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