A história esqueceu-se delas
O papel da chamada "lei do ventre livre" na abolição da escravatura, os negócios em torno das amas-de-leite, escravas que amamentavam os filhos dos proprietários, a importância dos conventos na emancipação da mulher. Estes são alguns dos temas de um livro que quer devolver às mulheres o seu lugar na história.
Por Natália Faria
Foram escravas e donas de escravos. Reduzidas à sua condição subalterna, resistiram como puderam, recorrendo muitas vezes à feitiçaria e à culinária. Durante séculos, as mulheres furaram convenções para viajar e recorreram à ironia para denunciarem a sua menorização social. Aproveitaram as portas que a Igreja Católica lhes abriu - mesmo que fosse para as fechar na clausura dos conventos - para se emanciparem através das letras. As mulheres fizeram tudo isto, mas permaneceram, ao longo dos tempos, como as "grandes silenciadas da história", defende a investigadora Clara Sarmento, que coordenou o livro Condição Feminina no Império Colonial Português, das Edições Politeama (Instituto Politécnico do Porto), que chegou recentemente às livrarias.
O papel da chamada "lei do ventre livre" na abolição da escravatura, os negócios em torno das amas-de-leite, escravas que amamentavam os filhos dos proprietários, a importância dos conventos na emancipação da mulher. Estes são alguns dos temas de um livro que quer devolver às mulheres o seu lugar na história. Por Natália Faria
Foram escravas e donas de escravos. Reduzidas à sua condição subalterna, resistiram como puderam, recorrendo muitas vezes à feitiçaria e à culinária. Durante séculos, as mulheres furaram convenções para viajar e recorreram à ironia para denunciarem a sua menorização social. Aproveitaram as portas que a Igreja Católica lhes abriu - mesmo que fosse para as fechar na clausura dos conventos - para se emanciparem através das letras. As mulheres fizeram tudo isto, mas permaneceram, ao longo dos tempos, como as "grandes silenciadas da história", defende a investigadora Clara Sarmento, que coordenou o livro Condição Feminina no Império Colonial Português, das Edições Politeama (Instituto Politécnico do Porto), que chegou recentemente às livrarias.
Foram escravas e donas de escravos. Reduzidas à sua condição subalterna, resistiram como puderam, recorrendo muitas vezes à feitiçaria e à culinária. Durante séculos, as mulheres furaram convenções para viajar e recorreram à ironia para denunciarem a sua menorização social. Aproveitaram as portas que a Igreja Católica lhes abriu - mesmo que fosse para as fechar na clausura dos conventos - para se emanciparem através das letras. As mulheres fizeram tudo isto, mas permaneceram, ao longo dos tempos, como as "grandes silenciadas da história", defende a investigadora Clara Sarmento, que coordenou o livro Condição Feminina no Império Colonial Português, das Edições Politeama (Instituto Politécnico do Porto), que chegou recentemente às livrarias.
Ao longo de quase 500 páginas, o livro assume a sua condição feminista sem disfarces, reconstituindo a condição das mulheres no império colonial português, desde o início da expansão marítima do século XVI até à desagregação do império no pós-25 de Abril de 1974. "Os académicos, presos a uma visão de género que privilegia a perspectiva dos poderosos - portanto, dos homens -, optaram por um discurso que olha a história de cima e silencia o ponto de vista dos desprovidos de poder económico, dos escravos e das mulheres, ou seja, de todos aqueles que não tinham acesso nem sequer ao poder que a palavra dá", diz Clara Sarmento, explicando que aquilo que os 31 investigadores de várias antigas colónias portuguesas que colaboraram na obra oferecem é um olhar focado nos "desprovidos de poder económico, dos escravizados e das mulheres que sempre se moveram nas franjas do poder".
À medida que o livro vai destapando esses "lugares silenciados" da história, o que se descobre são realidades muito heterogéneas. Das estratégias de resistência ao colonialismo adoptadas, no século XVI, pelas escravas da Baía, à condição das empregadas de escritório na Lisboa dos anos 1970. Na mesma perspectiva feminista, o livro detém-se ainda na forma como as religiosas dos séculos XVI ao XVIII, enclausuradas no silêncio conventual, se transformaram em "mulheres de enorme erudição, que, como Teresa d'Ávila, cultivam as suas discípulas, escrevem e, portanto, perpetuam o conhecimento", garante Clara Sarmento. "No caso das escravas de origem africana no território colonial brasileiro, estas resistem associando-se a movimentos de cariz espiritual, como o candomblé da Baía", exemplifica, acrescentando que a resistência também passava pela culinária. No microespaço doméstico, aliás, "as escravas adquiriam um poder que era muitas vezes invejado pelas próprias senhoras brancas". Os filhos das outrasNo século XIX, as escravas eram vendidas a um preço 25 por cento inferior ao dos escravos. "Além de fisicamente mais frágeis, as mulheres eram tidas como menos produtivas e de envelhecimento mais rápido", descreve a historiadora brasileira Maria Ângela de Faria Grillo, depois de ter analisado os anúncios de aluguer, compra e venda de escravas nos jornais de Pernambuco, entre 1850 e 1888.
O preço podia variar consoante a concorrência, a especulação que havia em torno dela, a idade e a sua qualificação profissional", mas sem nunca se negligenciar a regra de ouro, segundo a qual o valor das escravas se negociava sempre "com abatimento de 25 por cento sobre os preços estabelecidos".A cor da pele parecia não influenciar o preço. O que não quer dizer que não fosse tida em conta, consoante a função a que se destinava a escrava. "Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar", sintetiza a historiadora, cujo artigo levanta ainda o véu sobre outra realidade bem feminina: o recurso às amas-de-leite para os filhos das sinhás (as mulheres dos grandes senhores rurais). Na colónia brasileira, a amamentação era uma prática comum entre as índias, as escravas e as mulheres pobres, "mas não entre as mulheres de elite, que não costumavam amamentar os seus rebentos nos seus próprios seios". Para isso, o mais comum, até ao final do século XIX, era delegar a amamentação a escravas. Daí a designação de "mãe-de-leite". Era, aliás, comum ver mulheres negras a amamentar crianças brancas. E, como observa a historiadora, "o preconceito e a discriminação desapareciam no momento de utilizar a escrava para garantir a vida de um futuro senhor".
O negócio era rentável, nomeadamente para quem possuísse "escravas paridas", ou seja, que tivessem dado à luz. "Os proprietários enviavam os filhos das suas escravas para as chamadas 'casas dos expostos' e depois alugavam as suas mães como amas-de-leite", ou seja, as escravas eram impedidas de amamentar os seus próprios filhos para amamentarem os dos seus patrões.A "lei do ventre livre"Outro dos aspectos menos estudados é o relacionado com o regime jurídico dos filhos das escravas, mais exactamente com a chamada "lei do ventre livre" que, em 1856 e por iniciativa de Sá da Bandeira, determinou que os filhos das escravas passavam a ser livres e não já propriedade do dono da sua mãe. Esta lei teve, porém, uma gestação muito demorada, como descreve Margarida Seixas. A autora do artigo começa por recordar que em todas as colónias portuguesas a regra era que filho de mulher escrava nascia também escravo e que, para muitos proprietários, "o nascimento dos filhos das suas escravas era uma oportunidade para aumentar o património".
A alteração substancial do regime até então vigente iniciou-se apenas com a legislação pombalina. Um alvará de 16 de Janeiro de 1773 ordenava já, entre outros aspectos, a "liberdade de ventre" de todos os filhos de escrava nascidos em Portugal continental. "Este começo auspicioso não teve, porém, continuidade", nota Margarida Seixas, lembrando que a "escravatura do ventre" se manteve nos demais territórios do império durante longos anos. Só em 1836 é que Sá da Bandeira, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, propõe à Câmara de Pares, para lá da abolição do tráfico e do registo dos escravos existentes no império, a "liberdade de ventre" para todos os que nascessem em qualquer território português. A proposta não passou. Até que, em 1856, depois de várias tentativas, Sá da Bandeira consegue ver aprovada aquela que ficaria conhecida como "a lei do vente livre", à luz da qual eram livres todos os que nascessem de ventre escravo em qualquer província ultramarina. Porém, os filhos das escravas ficavam obrigados a trabalhar para os senhores de suas mães até aos 20 anos. E o problema era que, como nota a historiadora, os jovens eram depois libertados "sem qualquer preparação para iniciar uma vida autónoma". A obrigação de servir o proprietário da mãe poderia cessar, mas apenas se o dono fosse ressarcido. E que sucedia ao filho menor de uma escrava, se esta fosse vendida a outro proprietário? "Acompanharia a sua mãe até aos sete anos de idade", explica a historiadora. Mas, se fosse mais velho, "continuaria a servir gratuitamente o primeiro proprietário, sendo separado da mãe". Poderia também acontecer que a mãe obtivesse por algum meio a sua liberdade. "Neste caso", descreve, "os filhos só lhe seriam entregues se não tivessem mais de quatro anos." As crianças com cinco ou mais anos "teriam de continuar a servir aquele que fora proprietário de sua mãe", nota ainda Margarida Seixas. E conclui: "A possibilidade de separação forçada de crianças de tão tenra idade de sua mãe é, sem dúvida, um dos resultados mais perversos da lei de 1856."
in jornal Público 22.10.2008
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