sexta-feira, outubro 17, 2008

CFESS Divulga Conferência de Abertura de José Paulo Netto Bahia 2008


XIX Conferência Mundial da Federarão Internacional dos Trabalhadores
Sociais
Salvador/Bahia, agosto de 2008
Abertura da conferência
Intervenção do Professor José Pauto Netto
José Paulo Netto é Doutor em Serviço Social e professor titular da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem mais de uma
dezena de livros publicados (português e espanhol) e cerca de 50 artigos divulgados
em periódicos de Serviço Social e de Ciências Sociais. Traduziu ao português
textos de Marx, Engels, Lukács e é membro do Conselho Edtorial de várias revistas
académicas.

Reunindo trabalhadores sociais de todos os continentes, esta Conferência Mundial da Federação Internacional de Trabalhadores Sociais tem algo de simbólico: realizando-se num pais da América Latina, sua temática * a concretização de direitos num "mundo globalizado" e numa "sociedade desigual" - expõe o essencial desafio que interpela estes profissionais em face dos dilemas centrais do tempo presente.
Aqui, nesta periferia infernal do capitalismo contemporâneo, tais dilemas aparecem em toda a sua dramaticidade e aqui, neste espaço em que as _grandes maiorias populacionais ainda demandam os direitos mais elementares, precisamente aqui os trabalhadores sociais podem confrontar-se com a gigantesca tarefa que os desafia: contribuir para converter direitos formalmente reconhecidos e concretamente necessários em efetividades sociais.
Este continente, que ainda exibe, para retomar a expressão do uruguaio Eduardo Galeano, as suas veias abertas, é o locus adequado para que discutamos uma das questões mais candentes do mundo contemporâneo: a destituição de direitos.
Mas esta questão não é uma particularidade latino-americana: ela está mundializada e afeta os homens e as mulheres trabalhadoras das Américas, da Europa, da Ásia. da África e da Austrália. Aliás, também são várias as questões conexas que se expressam diferencialmente, carregadas de diversas características históricas, culturais e étnicas -mas todas remetem ao mesmo núcleo problemático: que futuro queremos construir, com que projetos societários pretendemos contribuir.
Eis por que, agradecendo a honra de participar desta Conferência, saúdo a todos os colegas, vindos das mais distantes latitudes, e me proponho a oferecer-lhes, a título de hipóteses de trabalho, algumas reflexões acerca da temática central desta Conferência - não mais que ideias para discussão, ideias que, aliás, não comprometem nenhuma das instituições a que me vinculo, posto que sejam de inteira responsabilidade pessoal.

No mundo em que vivemos, felizmente desapareceram as pretensões às verdades absolutas, desapareceu a fé cega em práticas profissionais tradicionalmente aceitas, desapareceram dogmas mantidos graças ao liberalismo cómodo e à tolerância repressiva. Por isto, o convite ao debate, à polémica, ao saudável confronto de ideias torna-se necessário e insubstituível. Aceitemos este convite, não nos esquivemos a ele. Sobretudo, procuremos na experiência histórica, na passada e naquela que está em curso, mais que simples exemplos: procuremos lições.
Coloquemos em questão, em primeiro lugar, esta noção tão divulgado, tão generalizada na mídia e repetida acriticamente por dirigentes políticos, líderes empresariais, académicos e até mesmo cientistas sociais: a noção de globalização.
A mais elementar observação sistemática do mundo contemporâneo deixa claro que, nos últimos trinta anos, não se "globalizaram" as práticas democráticas, os direitos sociais universais nem, muito menos, o acesso ampliado aos bens materiais e culturais.
Um analista rigoroso como o Prof. Hobsbawm salientou, já nos anos 1990, um dado que todas as fontes internacionais dignas de crédito - como, por exemplo, vários relatórios de agências da ONU - vân reiterando: crescem as desigualdades entre os países ricos e os países pobres e, tanto no interior de países ricos quanto de países pobres, crescem as desigualdades entre os seus pobres e os seus ricos. Exemplo emblemático desta situação nos é fornecido pelo acompanhamento dos "Objetivos de desenvolvimento do milénio", formulados pela ONU em 2000: os últimos relatórios do PNUD acerca dos indicadores de desenvolvimento humano e social revelam que os avanços no rumo do cumprimento das "Metas do Milénio" têm sido muito pouco significativos e investigadores independentes não vacilam em prospectar o fracasso do projeto formulado pela quase totalidade dos Estados existentes.
Sejamos claros, francos e diretos: a "globalização" foi, e está sendo, tão somente o que François Chesnais designou como mundiafização do capital. Ela consistiu mm projeto (isto é: a "globalização" não é algo "natural", mas um projeto com sujeitos bem determinados) que se processou de modo a garantir uma mobilidade irrestrita ao capital (suas mercadorias e seus serviços), sem travas políticas de quaisquer espécies; suas palavras de ordem foram "flexibilização".
Mas, ao mesmo tempo em que se assegura ao capital a mais plena mobilidade de que ele desfrutou na história, o que se oferece à força de trabalho não é mais que o seu insulamento: enquanto o capital circula "globalmente", crescem as restrições ao mero direito de ir e vir dos trabalhadores, chegando-se a medidas tão constrangedoras em face de movimentos migratórios que a construção de verdadeiras muralhas medievais já não assombra a mais ninguém. Tocamos aqui num aspecto sensível para os trabalhadores sociais: adiscussão das macro-orientações económicas. A trajetória histórica do Serviço Social praticamente inibiu o trato da Economia Política e, em especial, da sua crítica: nossa profissão nasceu e se desenvolveu considerando que a "questão económica" não constituía um problema profissional - e, por décadas, pensamos políticas sociais desvinculadas e desconectadas das políticas económicas.
Pensamos bem-estar social sem pensar os seus fundamentos económicos. Este posicionamento é inaceitável e insustentável: não se pode analisar a"questão social", e, menos ainda, intervir nela com efetividade, se a pensarmos como questão moral ou cultural. Por isto, a referência à economia capitalista contemporânea é absolutamente essencial se queremos, de fato, e não somente em palavras, aceitar o desafio de concretizar direitos no marco da "globalização". Qualquer debate sério sobre direitos no mundo contemporâneo deve começar pelo reconhecimento do óbvio condicionalismo dessa contemporaneidade pela mundialização do capital. Ora, a característica central da economia capitalista contemporânea, que a distingue de seus estágios anteriores, é que o grau de concentração do poder económico atingiu um nível tal que ele é incompatível com quaisquer controles democráticos. Atualmente, nem mesmo os mecanismos formais que, nas estruturas políticas, pretendiam criar controles institucionais -como, por exemplo, o proclamado "equilíbrio entre os poderes executivo, legislativo e judiciário" - nem mesmo esses mecanismos formais subsistem. De um lado, verifica-se a erosão das instâncias legislativo-pariamentares, ladeadas pelos lobbies de toda natureza; de outro, e mais impactante, a erosão da soberania dos Estados mais frágeis.
Este aspecto é fundamental: a"globalização" não derruiu o Estado Nacional, como pretendem os seus apologistas. Ao contrário, ela fortaleceu enormemente o poder de uns poucos Estados nacionais, debilitando - direta e indiretamente - a soberania dos outros. Diretamente: a pressão do capital financeiro inviabiliza qualquer pretensão autonomista (e isto não vale apenas para Estados periféricos: pense-se, por exemplo, na vitória, nos anos 1990, dos interesses do mega-especulador George Soros sobre a orientação financeira do Banco da Inglaterra), indiretamente: os condicionalismos postos pelos chamados organismos mu Iti laterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Não foi por acaso que, diante desse quadro, um investigador como Michel Chossudovsky tenha mencionado "a globalização da pobreza".
Mas, atenção: é porte inseparável desse processo de "globalização" - mais exatamente, como vimos: de mundialização do capital - a deterioração profunda das condições de vida e trabalho também nos centros do sistema. Não é apenas a periferia da economia capitalista que padece: também nos economias centrais o impacto da hipertrofia do poder das grandes corporações e da fínanceirização da economia se faz sentir com forca - basta recordar seja "o horror económico" de Viviane Forestier, seja a bem documentada pesquisa de Martin e Schumann, que mostra "o assalto à democracia e ao bem-estar social". Não foi por um mero acaso que, na decorrência da crise do Welfare State, alguns intelectuaisdescobriram a mal-chamada "nova questão social" que, de nova, nado tem: trata-se, apenas, de: novas expressões da velhíssima "questão social", resultante necessária da lei geral da acumulação capitalista.
Perdoem-me essas alusões à economia política contemporânea: bem sei que aos trabalhadores sociais elas soam estranhas e incomodas- Mas, insisto: sem levá-las em consideração, o debate sobre direitos torna-se esvaziado e perfunctório.
Permito-me chamar a atenção para tal esvaziamento com umailustração. Nos últimos trinta anos, o centro do debate sobre os direitos foi ocupado pelos direitos humanos. Trata-se de uma centralização que deve ser saudada e estimulada: sem a defesa intransigente e firme do elenco sempre ampliado dos direitos humanos é impensável qualquer pretensão civiíizatoria.
Todavia, é paradoxal que tal defesa tenha se desenvolvido precisamente na mesma quadra histórica em que, em todos as latitudes, registra-se uma inequívoca redução dos direitos sociais. Curiosamente, não se tem levado em conta que ^"globalização", a mesma que parece ter permitido colocar no agenda política a centralidade dos direitos humanos, vem se conduzindo mediante a desqualificação prática dos direitos sociais.
Também aqui serei direto e claro: nenhuma defesa dos direitos humanos será eficaz se nãoexplicitarmos, sem qualquer ambigúidacíe, que a vigência dos direitos humanos indissociável hoje da garantia dos direitos sociais que foram consagrados no terceira terço do século XX. Divorciar direitos humanos de direitos sociais é capitular diante do barbárie contemporânea
Porque, não nos iludamos, o desafio contemporâneo de concretizar direitos é apenas uma expressão da luta contra a barbárie. Não encontro conceito mais adequado que o de barbárie para sinalizar, nos países centrais, a destruição dos sistemas de proteção social que foram erigidos, a duras penas, na imediato sequência da Segundo Guerra Mundial e, nos países periféricos, a realidade brutal do pauperismo, que assola a África sub-saariana, amplas áreas da Ásia e do América Latina e do Caribe.
Barbárie que se apresenta, basicamente, em três dimensões. A primeira é a naturalização da pobreza: enquanto se multiplicam, aos milhares, planos, projetos e programas de redução da pobreza absoluta (de fato, da indigência), não há uma só voz a indicar as suas causalidades sociais profundas nem, muito menos, que afirme ser possível, viável e necessário lutar em prol da supressão da pobreza. É supérfluo acrescentar que, à naturalização da pobreza, segue-se a criminalizacão do pobre: alguma razão deve assistir a Lõis Wacquant para constatar que, ao Estado de Bem-Estar Social, está sucedendo o Estado Penal.

A segunda dimensão é a Criminaiizacão do dissenso político: todo projeto nacional ou societário que discrepe da ordem "globalizada" é acoimado de "terrorismo* - e Estados se arrogam, com o poder do arbítrio que seu poderio militar lhes outorga, o direito de caça aos "terroristas" onde lhes aprouver e com a utilização maciça do pior dos terrorismos, o terrorismo de Estado.
A terceira dimensão da barbárie contemporânea é a negação absoluta de qualquer alternativa à ordem global vigente. No plano cultural, ela expressou-se na emblemática formulação de Francis Fukuyama, segundo a qual a história chegou ao fim: o futuro não passa de uma reprodução ampliada do presente. No plano prático, político e profissional, ela toma a forma do possibilismo: o minímalismo das ações corretivas e suplementares, a conversão do assistencíalísmo emergência! em política pública e a degradação do ideário humanista da igualdade na humilhante programática da "redução das desigualdades".
Entendo que a barbárie contemporânea, tal como a exponho aqui, não é um azar da história ou um desvio de nossas sociedades em relação a um itinerário pré-estabelecido. Nada disso: ela é apenas a resultante incontornável de um modo de organizar a produção e a distribuição das riquezas sociais, organização que só pode apresentar as características com que nos deparamos hoje. Esse modo de organização, a prosseguir sem reversão, reproduz uma modalidade de crescimento económico que não é apenas destrutiva no que toca às relações sociais: é destrutiva até mesmo do ponto de vista dos ecossistemas, conduzindo a humanidade à beira do colapso, com a possibilidade da catástrofe ecológica colocando em risco a sobrevivência da vida no planeta.
Retomemos: a luta pela concretização de direitos - sejam os direitos ditos clássicos (conforme Marshall, civis, políticos e sociais), sejam aqueles que Bobbio designou como direitos de terceira geração - esta luta é a luta contra a barbárie contemporânea.
Não penso que o desafio nela contido seja pertinente a uma ou outra profissão: ele interpela todas as agências da sociedade civil que não aceitam a degradação da vida social a uma mera variável dependente do que o pensamento dominante designa por "exigências do mercado" e/ou "competitividade". Mas é evidente que os trabalhadores sociais têm nela um parâmetro indescartável: sob pena de perder a sua legitimidade social, o profissional do Serviço Social está no coração mesmo da luta por direitos.
Por isto mesmo, é preciso ter a mais clara consciência de que a concretização de direitos extrapola largamente a esfera jurídico-política. A consagração jurídico-política de um elenco de direitos é sempre importante para implementá-los - mas está longe de garanti-los, seja nos planos nacionais, seja no plano das interações transnacionais.

(...)

leia na integra na pagina do CFESS

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