domingo, fevereiro 24, 2008

Serviço Social Basta de Moralismos um Texto de Ernesto Fernandes

BASTA DE MORALISMO SOCIAL
Este viver habitualmente
Ernesto Fernandes *
Prof. do ensino universitário

É sobejamente conhecido, deprimente e agónico, o des-amor entre discursos e práticas na cultura portuguesa. Questão não exclusiva do carácter português. Contudo, em Portugal, à semelhança da Espanha, Itália e Grécia, o campo do ideo-cultural de cariz católico demarcou-se da cultura protestante da Inglaterra, Suécia ou Holanda. Lutero decifrou, contra o papismo, que a fé sem obras é morta. Esta máxima bíblica alentou o capitalismo industrial contra o capitalismo feudal ou mercantil em que andamos religiosamente acorrentados. Os portugueses, mesmo na era do império das descobertas e da colonização, são especialistas em comprar e vender a riqueza produzida por escravos, indígenas e pobres, daqui e d’além fronteiras.

Seja feita honra a certos poucos intelectuais e políticos que se expuseram em denúncia do paraíso português, por exemplo: D. João II, Marquês de Pombal, Bento de Jesus Caraça, António Sérgio, Maria de Lourdes Pintasilgo. Sobre a rainha Santa Isabel, casada com o rei D. Dinis, deixou-nos o milagre da compaixão-piedade-misericórdia, estruturante desta desordem ideológico-cultural do Portugal de agora. Nem Abril em sua mocidade alterou a mocidade portuguesa de Salazar, em tempo de hoje, socraticamente governado.

Sócrates, o filósofo, segundo a tradução de Platão e Aristóteles, interroga-nos sobre o divórcio entre filosofia e política. No tempo da globalização, a separação é radical: temos filósofos sem política (anjos) e políticos sem filosofia (tiranos). A polis, enquanto mundo entre os homens, expõe-se em deserto (Nietzsche), em ignorância (Camus), em cegueira (Saramago), em castelo (Kafka).

Retomo, contra este circo espasmódico e agonista, a palavra de Sophia de Mello Breyner Andresen em seu poema Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre


Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo

Certas categorias profissionais – assistentes sociais, médicos, educadores e professores, psicólogos, diferentes em género e iguais na cultura dominante – são convocadas a mudar o seu olhar-lidar com Esta Gente. Não se trata de imitar Madre Teresa de Calcutá ou o Padre Cruz. Trata-se de romper com a indignidade pessoal e técnica de tratar a dignidade humana do “utente”, ou seja, aprender a defesa e o cuidado da liberdade humana contra o fenómeno totalitário (Cf. Arendt, 2007). Em registo reflexivo idêntico, escreve Boaventura de Sousa Santos, quando retoma o conceito de fascismo social em A Gramática do Tempo. Para Uma Nova Cultura Política (2006).
Pior que a dor sentida pela reflexão é a dor consentida pela distracção-alienação das dores, algumas sem nome, que minam o coração da vida (Cf. Fleming, 2003).

Quando esta procissão ainda não partiu do adro, basta de moralismo do viver habitualmente (Salazar), antes a palavra de Maria Rosa Colaço em Maria Tonta Como Eu (1983):

Agora, só falta o ramo de flores! Eu olhava para mim como se me quisesse guardar no seu enlevo. O ramo é feito de papoilas, malmequeres, rosa, cravos, espigas de trigo e Maios azuis, as pequenas flores perfumadas que só neste mês abrem ao sol e sem as quais um ramo de Maia não teria sentido.
Pego no ramo.


Almada, Fevereiro de 2008





Nota Bibliográfica

Acreditando na terapia da reflexão e da escrita, recomendo como leitura:

ARENDT, Hannah (2005), A Promessa da Política, Lisboa, Relógio D’Água, 2007.
COLAÇO, Maria Rosa (1983), Maria Tonta, Como Eu, Lisboa, Distri editora.
ROSA, Honorato (1968), A Dignidade Humana: As Coisas Têm Preço. O Homem Dignidade, in Ernesto Fernandes (org.), Honorato Rosa, Escritos e Depoimentos: A Dignidade Humana, Lisboa, Instituto Superior de Serviço Social e Multinova, 1996.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática do Tempo. Para Uma Nova Cultura Política, Porto, Edições Afrontamento.

Sem comentários: