segunda-feira, janeiro 28, 2008

HUMILHAÇÃO Alvorecer do Assistencialismo

HUMILHAÇÃO
Alvorecer do assistencialismo



Os cravos vermelhos de Abril, símbolo e inspiração da liberdade contra a oligarquia, andam a ser engolidos, devastados ou substituídos por bolacha Maria, queijinhos triangulares, arroz, cuja marca é Ajuda CE – Programa 2007, Intervenção do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social – Execução e Controlo do IFADAP/INGA e certificação Venda Proibida.

São público-alvo, segundo a gíria técnica, os utentes do RSI, pensionistas, reformados idosos, pobres. Por azar do destino, alguns dos produtos referidos já me foram oferecidos, no intervalo de um mês, por um casal de octogenários que me tratam como filho. Sinto-me privilegiado por esta abundância, bafejado enquanto criatura que trabalha as políticas sociais como professor de técnicos superiores. Senhoras e senhores assistentes sociais e outros licenciados da intervenção social e cultural, a humilhação imposta ao cidadão justificaria o vosso despedimento por justa causa, segundo a Constituição da República de Abril. É conhecida, desde há muito, a vossa defesa que tem barbas: os ditos são porcos, maus, feios e ingratos face a tanta excelsa consagração dos seus direitos sociais.

Regresso do assistencialismo que, segundo os ideólogos da ditadura, a assistência é a distribuição da esmola, a previdência é a satisfação dos direitos devidos ao trabalhador. Reemergência da “caridade” como feito de um Estado de direito democrático, quando a banca explode em lucros e a bolsa global distribui equitativamente a miséria por milhões, em actos mediaticamente exibidos. A liberdade enruga-se. A tirania engorda-se.

Se o Cristo, na cruz crucificado, fosse entrevistado pela TVI, que posição tomaria?
Tendo-o particularmente consultado, aconselhou-me: leia o Rio das Flores, do filho de Sophia de Mello Breyner Andresen, na página 543, que reza o seguinte:

A caridade é um luxo de ricos, um prazer exclusivo de quem nasceu rico. A consciência de quem nasceu pobre não se apazigua com essa facilidade, pelo contrário, só desassossega.

O Cristo prosseguiu, em seu jeito socrático: apesar dos dissabores e da violência e das macias vozes que escuta, a caridade é anti-democrática, é desumanização. Escute, caro concidadão, a justiça é o primeiro dever da caridade como os meus discípulos escreveram e como disse, no século dezanove, passados quarenta anos sobre o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, Leão XIII, chefe de uma religião de nome católica, em Rerum Novarum. Nesta carta foi lúcido, em parte, apesar de cumpliciar com a canalhada do capitalismo selvagem, para utilizar a sua expressão. Papa, qual papalvo!

Com votos de Bom Ano, deixo-o entregue ao Rio dos Cravos, cravos que bem senti em minha escultura de morte.


Almada, 27 de Janeiro de 2008
Ernesto Fernandes

1 comentário:

S Guadalupe disse...

Já não chegavam os vales sociais? Agora também há géneros à mistura? Ai ai...