Universidades : Conservadurismo, Reformismo
ou simplesmente Retórica ?
A necessidade de auto-conceder à Proposta do Governo, sobre o Regime Juridico das Universidades, um carácter de reforma histórica no Ensino Superior neste início de século, apontando para um futuro que saiba enfrentar os desafios nacionais e internacionais, da ciência, do mercado e da gestão, gerando uma transformação radical das universidades portuguesas, levou o Ministro Mariano Gago a polemizar sobre o carácter do conservadurismo das visões de mundo que primam nas universiadades, impedindo as mudanças nestas instituições. A escolha de Mariano Gago, como uma amostra deste pensamento, teve como alvo o nome do Professor João Miller Guerra. Este facto suscitou não poucas críticas, especialmente vinda do Reitor da Universidade Nova de Lisboa, que afirmou que o pensamento deste médico sobre as possibilidaes de reforma universitária foram colocadas num contexto do Estado Novo, com asuência de democracia.
Como este assunto, o debate sobre caráceter inovador e reformista da proposta liderada pelo Ministro Mariano Gago, ficou em "banho Maria", deixamos extractos do texto de João Miller Guerra
Tradição e Modernidade nas Faculdades de Medicina.
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2. À concepção das Faculdades de Medicina
Como as demais Faculdades, a de Medicina sofreu nos últimos anos uma dupla pressão, a que tem resistido até agora sem alterar a sua estrutura e finalidades tradicionais. O aumento do número de alunos, por um lado, o aumento dos conhecimentos, por outro, são as causas principais que impelem as Faculdades a modificarem o seu «statu quo», sob pena de se divorciarem das funções que lhes incumbem.
Estas causas, por sua vez, são consequência de outras subjacentes que impulsionam as sociedades contemporâneas e que vêm a ser a tecnologia científica e a explicitação das necessidades humanas, subjectivas e objectivas. No que toca à Medicina, estes factores projectam-se no exercício da profissão, no ensino e na pesquisa, isto é, atingem directamente as Faculdades, submetendo-as às novas exigências e condições. Pode pensar-se, e assim infelizmente faz muita gente, que se trata menos de uma «mutação» que de uma «evolução», isto é, de uma mera acentuação numérica de alunos, de disciplinas e de necessidades médico-sociais, que de forma nenhuma prejudica as estruturas vigentes. Este modo de ver pouca importância teria, se se limitasse a satisfazer um certo espírito conservador, retardatário, que fecha os olhos às realidades novas, refugiando-se no passado. Mas a verdade é que quem assim pensa, procede, na prática, irrealisticamente, querendo remediar males que são novos, com processos velhos. Desta maneira, para acudir ao excesso de alunos envereda pelas soluções superficiais que apenas ampliam as dificuldades e impedem as reformas de fundo. Por exemplo: como os anfiteatros não têm capacidade, constroem-se mais salas de aula; como há poucos docentes, nomeiam-se mais; como os estudantes se acumulam perdendo cadeiras e anos, modifica-se o regime das precedências e o regime de exames; como o rendimento escolar é diminuto, alteram-se os programas e horários, suprime-se a tese de licenciatura, abrevia-se a duração do curso. Quem não vê o carácter improvisado de medidas deste teor?
A questão tem de ser posta em outros termos, tomando a realidade em si mesma, nua e crua, despida das roupagens que a disfarçam. O movimento evolutivo dos nossos dias, englobando as instituições universitárias, descobriu-lhe os anacronismos e a incapacidade para corresponder às necessidades. Daqui derivaram os enredos e contradições em que se debatem as Faculdades, que não é possível resolver enquanto se conservar o sistema.
Em duas palavras, eis as contradições principais que enleiam o ensino médico que, como dissemos, são quase as mesmas do ensino superior em geral.
A primeira procede do «tipo institucional» em que as Faculdades estão integradas, ou seja, do sistema napoleónico-latino que instaurámos em 1836. O texto da Oração de Sapiência proferida por Sobral Cid em 1906, transcrita na «Antologia», bem como o estudo do prof. Alberto Ralha inserto nesta colectânea de Analise Social, traçam as linhas mestras da Universidade instituída por Napoleão I, de que fomos imitadores e, de certo modo,herdeiros.
Por mal dos nossos pecados, o legislador liberal foi influenciado pelas reformas imperiais francesas, em vez de o ser pelas germânicas que por essa mesma época começavam a tomar consistência, inspiradas por humboldt. A século e meio de distância é talvez fácil condenar as ideias que levaram à fundação da Universidade imperial, porque sabemos hoje que os caminho da modernidade foram os que a Alemanha abriu então, concebendo uma Universidade baseada em dois pilares: a autonomia e a investigação. Muito outros eram os fundamentos da Universidade de França, bem contrários ao progresso científico, tecnológico e pedagógico, como se está vendo. Constituiu-se um corpo de doutrina que vertida numa instituição logicamente arquitectada e autoritariamente construída, perdurou até agora não só nos países de origem mas, o que é pior, transplantada para todo o orbe latino e latino-americano.
Centralização, autoritarismo, burocracia, imobilidade, dogmatismo, são características proeminentes da instituição napoleónica. Os predicados das Universidades modernas, estilo anglo-saxónico, são muito diferentes: flexibilidade, pragmatismo, espírito de empresa e competição, pluralismo, trabalho de grupo. Umas encerram-se depressa no isolamento, favorecendo a conservação das tradições. As outras, pelo contrário, abrem-se para a vida
e meio ambiente, favorecendo a mobilidade e as inovações-Umas propendem para o retardamento, outras para o avanço.
As Universidades do primeiro tipo baseiam-se nas Faculdades e, estas, nas cátedras. Tantas vezes se têm apontado os defeitos do «regime catedrático» que é quase supérfluo insistir neles, embora não se possam passar por alto, pois é certo que «lê professeur de droit divin» é um dos maiores obstáculos às inovações, mesmo quando se declara partidário delas. É que a vontade dos indivíduos exerce apenas insignificante influência na instituição a que pertencem, quando esta possui as raízes e o vigor da universitária. O catedrático-reformador está sujeito às «leis imanentes» do sistema escolar de que é usufrutuário. Reformando, destrói o fundamento da sua posição e privilégios, ou seja, as suas condições de existência. Por isso se afirma com acerto que as reformas inovadoras nunca são promovidas pelo grupo a que elas respeitam; por outras palavras: as instituições universitárias não se auto-reformam. Podem, é verdade, pedir ou consentir alterações parciais, mas o conjunto permanece inalterado.
Mostra a história, e a experiência confirma, a incapacidade de auto-reformação do ensino superior, assim como o facto de todas as reformas de estrutura terem provindo de acções externas, geralmente o Estado quando interpreta os interesses colectivos.
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sic pp 641-643
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11. Conclusões
Em suma. As condições em que se desenvolveu a medicina impregnaram o seu ensino, no qual domina a centralização, a rigidez e o espírito dogmático. O curso é constituído por disciplinas isoladas, tendo por base as ciências morfológicas e a medicina curativa hospitalar. O curso e o ensino estão de facto separados da vida médica nacional (Saúde, Assistência, Previdência, etc.)- O curso tem uma única saída: a clínica geral.
Muito diferentes são os atributos do ensino moderno que, naturalmente, reflectem a ideologia e os sistemas sociais do nosso tempo. Em vez de centralização, autonomia; de rigidez, flexibilidade; de dogmatismo, espírito crítico. O curso é constituído por disciplinas integradas, fundamentando-se nas ciências biomédicas e na medicina preventiva (em sentido lato). As Faculdades contraem relações estreitas, orgânicas, com a vida da comunidade. O ensino pós-graduado, primeiro passo para o ensino permanente, institucionaliza-se. O curso tem saídas para an r.-u-ivi rãs hospitalar, de saúde pública, universitária, de inv. e para a medicina livre.
Pensa-se geralmente que a educação é o agente do desenvolvimento social e do progresso da cultura, bastando reforma-lá para se efectuarem as transformações desejadas. À primeira vista a ideia é exacta, pois que os conhecimentos e as acções humanas dependem da educação em máxima parte. Porém as coisas são mais complicadas. Em primeiro lugar e contra as teses habitualmente defendidas, o que é preciso quase sempre é educar (ou reformar) os próprios educadores (ou reformadores), porquanto, se assim não sucede, o sistema educacional converte-se num factor de conservantismo. Isto é muito evidente nos períodos da transformação rápida, como aquele em que vivem as civilizações modernas. «Loin d'être un véhicule dês transformations sociales, et comme on l'a souvent proclame et voulu croire, 1'instruction peut s'avérer une prison d'idées périmées, surtout en période de changements rapides, telle qu'est lê nôtre». (Alexandre king).
Por outro lado, o sistema educacional pode ser utilizado, e é, como mecanismo de controle, inibidor ou facilitador, da evolução socio-cultural. Será preciso dar exemplos?
Diz-se que as disciplinas históricas, literárias e jurídicas, são mais fáceis de submeter à vigilância da ideologia dominante do que as ciências experimentais, mas não é bem assim, como o prova a experiência quotidiana. Umas e outras estão acorrentadas a formações socio-jurídicas que lhes podem coarctar os movimentos espontâneos. A ciência, mesmo a ciência experimental, depende de condições exteriores que vão dos meios de trabalho à definição das suas finalidades. Isto mostra-nos mais uma vez a conexão íntima que hoje se observa por toda a parte entre as variadas actividades, funções e tarefas. O isolamento do educador, do cientista, do professor, do médico, da vida social, tem de substituir-se pela cooperação e pelas estruturas flexíveis da participação-contestação. Como bem diz P. JOLIOT-CURIE, na homenagem a Langevin, «c'est en homme de science que vous vous préoccupez dês questions sociales. Même au point de vue unique de lintérêt de la science, cês préoccupations sont necessaires, car chacun sait que Ia science ne peut se développer harmonieusement que si lês conditions extérieures lui sont favorables».
Resumindo este comprido arrazoado, concluímos:
1.As estruturas tradicionais das Faculdades de Medicinadeviam ser substituídas por estruturas modernas, criando novasFaculdades, uma em Lisboa e outra no Porto.
2. Seria preciso criar também um Instituto de pós-gradua-dos, em Lisboa.
O fim da educação médica consiste em habilitar o estudante os quatro imperativos da medicina actual que repetimos mais uma vez: a promoção da saúde, a prevenção, a cura e a reabilitação. O médico torna-se um agente impulsor do desenvolvimentoo Social que compreende três finalidades essenciais: a elevação do nível de vida, a correcção das desigualdades e acooperação crítica nas acções comunitárias.
A realização destas aspirações é longínqua e penosa; entretanto, é precisso combater com ardor, mas sem ilusões — ou antes, com as ilusões necessárias para não desistir.
7-8-1968
pp 665-667
in Revista Análise Social, A Universidade Portuguesa,pp 639-667
Nº22-23-24, Vol.VI 1968
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