SERVIÇO SOCIAL E ÉTICA: PRINCÍPIOS E PRÁTICAS
Em Casa de Ferreiro, Espeto de Pau?
Ernesto Fernandes*
Com o presente escrito pretende-se abordar a ética como dimensão fundante do Serviço Social, desde a sua institucionalização como formação-profissão até aos tempos de hoje. Entre desvios eticistas e tecno-cientistas, a filosofia dos valores e dos direitos humanos tem-se vindo a afirmar como imperativo e compromisso ético-político da intervenção. Trata-se de uma filosofia prática constituída como referente e quadro de avaliação das práticas. No quotidiano profissional, a exigência e o rigor obrigam, segundo o ditado popular, a perguntar: Em casa de ferreiro, espeto de pau? Elenca-se a este respeito situações de menosprezo ou negligência pelos valores da deontologia profissional. Defende-se a construção de uma ética básica e transversal a todos os profissionais da intervenção social profissional. Reflecte-se, ainda, sobre o confronto entre a ética liberal (humanismo abstracto ou essencialista) e a ética emancipatória ou da solidariedade. Por fim, esclarece-se a dialéctica e o conflito entre Deontologia Profissional (valores ou deveres éticos) e Código Deontológico (normas ou preceitos éticos).
1. Trajectória do Serviço Social: ciência, ética e estética em jogo desigual
O Serviço Social institucionaliza-se como profissão a partir do último quartel do século XIX, em sociedades de transição para o capitalismo monopolista e de emergência do Estado Social. Inserido no campo das políticas sociais, o Social Work tem por finalidade satisfazer necessidades de subsistência/materiais e/ou problemas sociais dos mais pobres das classes trabalhadoras. Uma prática profissional virada para o mal-estar, socialmente produzido pelo conflito estrutural entre capital e trabalho (Cf. Netto, 1992).
Segundo a tradição anglo-saxónica, o Trabalho Social afirma-se academicamente como disciplina profissional no universo das ciências sociais por confronto com as disciplinas científicas, dado que o seu desígnio é a intervenção sobre as necessidades humanas e os problemas sociais. Dualismo que transversa, até hoje, o percurso académico e profissional do Serviço Social, apesar das mudanças de trajectória ocorridas nas últimas décadas, a nível internacional. No caso português, o reconhecimento da licenciatura em 1989 (Institutos Superiores de Serviço Social de Lisboa, Coimbra e Porto), a expansão das licenciaturas, desde meados dos anos 90, também no ensino público, e a oferta de pós-graduação profissional e académica (mestrado e doutoramento) assinalam a nossa singularidade no contexto dos países da Europa (Cf. Negreiros, 1999: 13-44; Fernandes, Marinho e Portas, 2000: 131-147).
Duas definições lapidares podem ser recenseadas para configurar o Serviço Social: arte de fazer bem o Bem e arte baseada na ciência. A primeira está associada às expressões históricas de caridade baseada na ciência e de filantropia científica. Explicitam o pendor ético da prática profissional que, em maior ou menor escala (eticismo), formatou o Serviço Social, sobretudo nos países pobres e periféricos (Cf. Correia, 1950). A segunda, arte baseada na ciência, acentua e faz prevalecer as referências científico-técnicas que devem enformar a intervenção dos assistentes sociais, pese embora o ethos de normalização das relações humanas ou de adaptar o homem à sociedade e a sociedade ao homem, como refere Simone Paré (1956). Esta tendência ganha relevo, a partir de meados dos anos 60, com o Movimento de Reformulação do Serviço Social. Liberto do domínio das referências ético-valorativas, correntes de renovação do Serviço Social resvalam para o cientificismo (Barbier, 1973). Coexistem, neste Movimento, uma pluralidade de perspectivas que, segundo Vicente Paula Faleiros e no contexto do Brasil e da América Latina, são classificáveis em três direcções: conciliação com o Serviço Social tradicional; reforma para modernizar e minimizar a dominação; transformação da ordem vigente (1999). Dada a influência do MRSS em outros países, não é abusivo generalizar estas três direcções ou correntes.
Sobre a componente arte persistente na configuração do Serviço Social clássico-tradicional, o Documento de Araxá deixa a questão em aberto por divergências entre os participantes no 1.º Seminário de Teorização do Serviço Social, realizado em Araxá – Brasil. Para o propósito da modernização do Serviço Social, ou seja, conferir-lhe um estatuto científico-técnico no campo das ciências sociais como uma técnica social, por quanto influencia o comportamento humano e o meio, nos seus intre-relacionamentos, era contraditório ou ambíguo manter a componente arte (1967: 5).
O questionamento das ciências sociais e a reemergência da teoria social crítica, particularmente a partir da década de sessenta, em tempo de contestação do modelo de desenvolvimento do pós-guerra, não só agendam como problema o divórcio entre ciência e ética, como problematizam a tridivisão social – educativo – cultural e a bifurcação das ciências sociais entre disciplinas científicas e disciplinas profissionais. A arquitectura, em tensão com a engenharia, representa, entre as profissões de intervenção na cidade, um modus operandi que melhor articula ciências, tecnologias e valores com as artes. A intervenção do Serviço Social, de natureza psicossocial (nível micro) e sociopolítica (nível macro), ganha em pertinência quando articula a dimensão da ciência/técnica (racionalidade cognitivo-instrumental), a dimensão valorativa (racionalidade ético-política) e a dimensão das artes ou da imaginação (racionalidade estético-expressiva). Consultar os Anexos nº1 e nº2.
No contexto ideo-cultural e sócio-político da era da globalização ou da efectiva desregulamentação neo-liberal, reforça-se a crítica da cisão entre verdade – bem – belo, enquanto eixo do projecto da modernidade. O império da razão indolente, produto do culto da razão (racionalismo), está vinculado ao desperdício da experiência (Santos, 2000) e semeia uma era de decepção e de impudência.
Porque a modernidade tem por mátria a tradição, é possível ousar pensar e inventar um outro mundo pela conjugação de crise, crítica e criação, palavras – irmãs da mesma língua, o grego (Fernandes, 2003). Porque a deriva e a errância são constituintes da condição humana, é justo salientar que, para além das práticas assistencialistas, o Serviço Social legou-nos, em sua tradição, um capital simbólico de defesa dos direitos humanos, emblematicamente construído por Jane Addams (1861 – 1935) em sua luta pelos direitos humanos, particularmente dos direitos da criança e da mulher, reconhecida com o Prémio Nobel da Paz, em 1931 (Cf. Martinez, 1991: 138-146). Uma herança que urge resgatar para prosseguir a renovação e a responsabilidade do Serviço Social para com a comunidade (v. Anexo nº3).
2. Valores da profissão e direitos humanos: transgressões e negligências
2.1. Clarificação de conceitos básicos
Desde a Escola de Atenas (Sócrates, Platão, Aristóteles), por volta dos anos 600 a.C., que a ética, articulada com a lógica, a estética e a política, se constitui como área do pensamento filosófico, também, e pela mesma altura, no Oriente (Índia, a visão hindu ou budista do universo; China, o confucionismo e o tauismo).
A ética esclarece-nos que valores são princípios ou ideais que se impõem como categorias que devem modelar e conferir sentido aos comportamentos/condutas do homem na cidade, por exemplo, os valores da dignidade humana e da justiça social.
Os direitos e os deveres são preceitos jurídico-políticos, isto é, consagrados em determinada sociedade pelo Estado. Assim, em sociedades de ditadura, nem os direitos individuais/cívico-políticos são reconhecidos, pese embora a existência de pessoas, grupos e movimentos sociais que, animados pelos valores da liberdade, da igualdade e da diferença, se envolvem em lutas de denúncia e resistência ao despotismo. No campo de certas profissões, ancoradas numa ética como eixo constitutivo da sua identidade, resulta em conflito, constrangimentos e perseguição o exercício da sua actividade profissional em sociedades de ditadura, de democracia restrita ou de cidadania apenas como condição e não como acção. Veja-se, por exemplo, a extinção e saneamento dos técnicos do Serviço de Promoção Social Comunitária, do Instituto de Assistência à Família, em tempo de Portugal do marcelismo.
Deontologia, de etimologia grega, é formada pelos termos deon (obrigação, dever) e logos (discurso, ciência), criada por Jeremy Bentham (1834). Hoje, concorrencia com a expressão ética profissional (Cf. Monteiro, 2005: 24-29).
2.2. Princípios éticos ou deontológicos do Serviço Social
Na contemporaneidade, apesar do confronto entre correntes liberais e neo-liberais e correntes críticas ou de sentido emancipatório, a ética do Serviço Social ganhou um consenso a nível internacional, que se traduz na seguinte tabela de valores ou princípios filosóficos, segundo a ONU (1999):
1. Vida
2. Liberdade e autonomia
3. Igualdade e não discriminação
4. Justiça
5. Solidariedade
6. Responsabilidade social
7. Evolução, paz e não violência
8. Relações entre o homem e a natureza.
Esta configuração ética, que deveria ser comum a todas as profissões de intervenção social (Cf. Fernandes, 2004), representa uma nova ética porque supera a ética liberal (individualista, sexista ou homofóbica, antropocêntrica, consumista) em favor de uma ética emancipatória: a solidariedade do homem com o homem, do homem com a natureza e do homem com as gerações vindouras e o futuro da Terra (Cf. Santos 2000). Sobre esta postura filosófica alternativa, a ética emancipatória nomeia-se também como ética do cuidado, ética da solidariedade, ética da co-responsabilidade ou ética de mais Platão e menos Prozac. A última designação, da autoria de Marinoff (2004), inscreve-se na corrente actual da ética consequencialista de Peter Singer, ou seja, de uma ética do humanismo concreto, liberta de uma visão abstracta ou essencialista do homem (ex. erradicação da pobreza), relevando a condição humana em sua sócio-historicidade para reduzir o sofrimento larvar e crescente, tão desigualmente distribuído, apesar do canto abstracto do bem estar. Importa prever e medir as consequências das nossas escolhas/opções no quotidiano para alargar a cidadania como condição e aprofundar a cidadania como acção (v. Anexo nº4).
Assim, a ética convoca-nos por causas, não por coisas, como Honorato Rosa nos advertira em A Dignidade Humana. As coisas têm preço. O homem dignidade [Fernandes (org.), 1996: 227-233].
2.3. Valores menosprezados ou negligenciados na prática profissional
Num universo de cerca de 140 alunos, do 4º Ano da licenciatura em Serviço Social, do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, no ano lectivo de 2005/2006, na disciplina de Ética do Serviço Social e na qualidade de docente, solicitei a realização de um trabalho de grupo ou individual sobre casos de infracção aos valores éticos da profissão, identificados em contexto de estágio de final de curso.
Do levantamento, registo as seguintes áreas-problema por ordem decrescente:
a) O utente como cidadão, sujeito de direitos e deveres
Confrontados no quotidiano profissional com situações de vulnerabilidade, risco e exclusão social, a rotina em detrimento da investigação – reflexão e da qualidade do acto técnico, traduz-se, quantas vezes, em procedimentos que ferem/insultam a dignidade do utente como cidadão, ou seja, como sujeito de direitos. São situações sensíveis, que obrigam a pensar: a mãe seropositiva, o infectado com o HIV, o toxicodependente, o imigrante não legalizado, a velha com o seu cão em sua casa, o sem abrigo, o alcoólico ou o afectado com hepatite B, a adolescente grávida, na ocultação do adolescente-macho. Ainda, o deficiente motor ou invisual, numa cidade arquitectada para os chamados normais. Problemas de utente-pobre que procura os serviços públicos. É urgente denunciar as visitas domiciliárias, sem pudor humano e técnico, são clara agressão da privacidade, violação da lei num Estado de direito democrático. Em ética, os fins não justificam os meios. Acresce, frequentemente, que os serviços de recepção e triagem administrativa acentuam o poder institucional sobre o utente. Desta forma, nomeadamente os serviços de segurança e acção social tornam-se um calvário para os pobres e toda a sorte de cidadãos em situação de precariedade, mesmo que sejam licenciados. Atente-se no que acontece com o Rendimento Social de Inserção. Este poder burocrático-administrativo enxovalha o cidadão, quando a medida de política social se configura de prevenção e promoção contra a exclusão, erosiva ou explosiva.
Registe-se, ainda, que é frequente o desrespeito pelos direitos da criança, dos menores e dos idosos. Procedendo deste modo, é a cultura salazarista dos deveres que pende sobre os utentes, é o assistencialismo a flagelar a cidadania, é a subsistência, tutelada pelo Estado e pelos técnicos, a desencorajar/bloquear a autonomia crítica ou emancipatória do utente.
Em seu gabinete inóspito, o assistente social não estende a mão para cumprimentar, não acompanha o utente à porta… A fealdade é a cenografia da relação de ajuda.
Muitos, entre técnicos e políticos, teimam em não compreender que pobre deve ser cuidado como rico e não como coitado. Por exemplo, a criança sente o brinquedo estragado que lhe é oferecido como prenda de natal, na cidade recolhido, em generosidade de piedade/compaixão à solta.
Importa abrir o jogo sobre o voluntariado. Este que deveria ser entendido como actividade cívica não deve (poder, pode) ser um capital barato das instituições. Compete aos técnicos formar, enquadrar e supervisionar os cidadãos voluntários, segundo um duplo objectivo: a sua auto-formação e a formação para uma ajuda assentada nos direitos do utente. Chega. É demais esta cultura, traduzida na esmola como sacrifício egocêntrico e antidemocrático, disse Mary Richmond em 1922. Porquê perpetuar a peste (Albert Camus) ou a cegueira (José Saramago)? Porquê persistir na naturalização/psiquiatrização/psicologização das necessidades e problemas sociais, quando o homem é o somatório das suas relações sociais (Richmond, 1917)?
b) Confidencialidade e sigilo profissional
Matéria altamente sensível. Quantas vezes, a devassa e a falta de discrição, mesmo em conversas de corredor, exibem a privacidade do cidadão-utente ou, igualmente grave, com os colegas de equipa, em conversa fiada, não tendo a noção que as informações prestadas devem ser, e apenas, as estritamente necessárias.
Sendo o sigilo profissional um direito do assistente social, consagrado desde 1956 no Decreto-Lei nº 40678, de 10 de Julho, do Ministério da Educação Nacional, constitui-se em dever incontornável em nome da dignidade do utente e da relação de confiança que, supostamente, o acto técnico exige. Assim sendo, o Projecto de Estatuto da Ordem dos Assistentes Sociais, sem prejuízo do que vier a ser desenvolvido no Código Deontológico, dedica, no Cap. IV, Secção II, especial atenção.
Nos trabalhos dos meus alunos, em contexto de estágio final de Curso, a questão da privacidade, confidencialidade e sigilo é transversalmente identificada.
c) O posicionamento dos assistentes sociais em trabalho interdisciplinar
Por razões histórico-culturais do nosso país, e não só, o corporativismo académico e profissional continua em cena, dificultando ou impedindo a articulação de saberes em prol de respostas qualificadas. A naturalização e a psicologização das necessidades e problemas sociais são visões que encobrem ou ocultam a sobredeterminação dos factores socioculturais. O saber dos assistentes sociais deveria ser âncora de afirmação e diálogo para um diagnóstico melhor e uma intervenção contextualizada e integrada. Uma frente de luta por ganhar.
Simbolicamente, o conflito técnico e político entre alta clínica e alta social, ou seja, entre os interesses imediatos da instituição e as necessidades do utente.
d) Colaboração no processo de formação dos novos profissionais
Quando é tão badalado o divórcio entre a universidade e a sociedade/mercado, não se compreende a falta de abertura de certos assistentes sociais e a resistência de certas instituições para colaborarem na formação, seja por visitas de estudo, seja por estágios curriculares. Esta des-responsabilização empobrece não apenas os alunos, como fossiliza os técnicos e as instituições. Para seu mal, não entendem que a energia em crítica e imaginação dos “novíssimos” são um capital humano para a renovação/inovação e legitimação actualizada dos desígnios da instituição-organização.
e) Visibilidade pública no campo das políticas sociais
Submersos no terreno e na rotina do quotidiano, prisioneiros da burocracia jurídio-administrativa, os assistentes sociais como categoria profissional retardam seu Manifesto, ou seja, tomadas de posição pública sobre as políticas e a garantia dos direitos humanos, cívico-políticos e sociais.
O evidente silêncio dos assistentes sociais é questão que deixa em perplexidade muitos dos meus alunos, para já. Dos sectores críticos da sociedade portuguesa, também.
Como é possível que uma profissão, em seu trabalho quotidiano, dê conta de ausência de respostas, dê conta da inadequação de medidas, dê conta que os direitos sociais reconhecidos não são garantidos, se feche em silêncio e não se declare em Manifesto?
A prudência aconselha a transgressão do ditado quem cala, consente. Ser prudente é ser pacientemente persistente, é dar visibilidade pública à investigação-reflexão, diagnóstica e propositiva, da profissão. Também, por esta causa maior, é urgente a criação da Ordem dos Assistentes Sociais. A mobilização e a pressão sociopolítica são a estratégia alternativa aos que querem dar tempo ao tempo, não cuidando que estão a perder tempo.
3. Deontologia ou ética profissional e código deontológico
3.1. Por uma ética da intervenção profissional
A tridimensionalidade do modus operandi do Serviço Social (científico-técnica, estético-expressiva e ético-política) modela como objectivo fundamental: promover o desenvolvimento de capacidades e competências sociais - sejam elas colectivas ou individuais - a três níveis: cognitivo (do conhecimento), fornecendo informação aos indivíduos, incentivando a sua compreensão para o funcionamento da sociedade e orientando-os sobre a melhor forma de utilizarem os seus recursos; relacional, facilitando o desenvolvimento das relações interpessoais e grupais, capacitando os indivíduos para assumirem novos papéis e estimulando novas formas de comunicação e expressão; organizativo, promovendo a interacção entre cidadãos, organizações e outras estruturas sociais, accionando ou criando novos recursos sociais e desenvolvendo a participação e a capacidade organizativa dos indivíduos e grupos.
Na dimensão ética ou axiológica, em conformidade com as orientações internacionais, o Projecto de Estatuto da Ordem dos Assistentes Sociais, no Cap. IV – Deontologia Profissional, define os seguintes valores:
a) Todo o ser humano tem um valor único em si mesmo, o qual justifica o respeito pela sua pessoa;
b) Todo o indivíduo tem direito à sua autodeterminação, emancipação e plena expansão das suas capacidades e tem obrigação de contribuir para o bem-estar da sociedade;
c) Todo o indivíduo tem direito à justiça e equidade sociais.
Neste quadro de valores ético-políticos, o exercício do Serviço Social:
- é incompatível com o apoio directo ou indirecto a grupos de indivíduos, forças políticas ou sistemas de poder que dominem os seres humanos pelo uso da força, tais como a tortura física ou psíquica, ou quaisquer outros meios violentos;
- visa a mudança societária, em particular face aos que sofrem as consequências de quaisquer formas de exclusão e injustiça social, nomeadamente por pobreza, desemprego, doença, cumprimento de pena ou violação dos direitos humanos;
- vincula o projecto profissional ao processo de construção de uma ordem societária que permita o desenvolvimento dos seres humanos, salvaguardando o equilíbrio ecológico e os direitos das gerações vindouras.
3.2. Conflitualidade entre valores e normas
A codificação/normatividade dos valores ou princípios fundamentais não deve traduzir-se em catecismo que espartilha, espatifa e exclui a auto-reflexão e a reflexão em banda larga (Moita, 1996). As normas ou regras, sempre cultural e historicamente determinadas, devem reportar-se, de modo dialéctico, aos valores/princípios que as justificam como melhor bem, ou seja, como redução do sofrimento e da vida consentida e como exponenciação da vida com sentido (Cf. Ferreira, 1998).
Nesta perspectiva, o Código Deontológico, enquanto instrumento de regulação da profissão, define um conjunto de normas que visam disciplinar o exercício profissional. Assim, o Projecto de Estatuto da Ordem dos Assistentes Sociais, (Secção I e II, artº.s 49º - 54º) categoriza os seguintes deveres e direitos:
- Deveres deontológicos para com a sociedade
- Deveres para com a Ordem
- Deveres para com os colegas e outros profissionais
- Do sigilo profissional.
Julgamos que outra categoria normativa não deve deixar de ser explicitada: os valores/deveres para consigo próprio, como se defende em Por uma carta ética da intervenção social (Fernandes, 2004: 147-149). Neste âmbito, considera-se fundamental, como o pão para a boca, o dever da reflexão-investigação para compreender os riscos, casuisticamente trabalhados, no contexto da sociedade do risco, despudoradamente exibida pelos media, em sonolento torpor dos cidadãos. Que nos valha a agrura e a emoção do real e não a anestesia imbecil do virtual. De facto, os técnicos também são mulheres e homens em risco na cidade, quando o desejo do reconhecimento, da dignidade e da diferença for o seu ethos pessoal e profissional.
Enquanto se aguarda a lei-quadro sobre as Ordens, em sede da Assembleia da República, reinsistimos no propósito de trabalhar o Código Deontológico com a participação empenhada dos profissionais. A este respeito, retomo a proposta divulgada no meu texto A Ordem dos Assistentes Sociais: ponto de situação e proposta, no Boletim de Notícias, nº4, Junho de 2006, p. 13, da APSS.
3.3. Por uma ética das profissões de intervenção social
Do ponto de vista do utente, a intervenção de certos assistentes sociais, médicos, professores ou outros animadores, sem falar dos amadores ou voluntários, é de humilhação e submissão. A cidadania como condição e, sobretudo, a cidadania como acção resultam em quase fracasso. Certos técnicos, “toxicodependentes” das necessidades e problemas de subsistência ou materiais, são incapazes de compreender o outro lado da vida: as necessidades de existência ou não materiais, igualmente básicas. O reconhecimento e a dignidade do outro, condição necessária para o desenvolvimento da sua auto-estima e sentido de si, submergem no tecnicismo burocrático-administrativo da intervenção. Assim, o ethos profissional traduz-se em acto disciplinar ou de controlo.
Desta forma, exercem uma pedagogia de opressão ou antidialógica, como, desde os anos 60 do século XX, denunciava Paulo Freire. Em causa está a sobrevitimização da vítima. Mas, um outro futuro, no presente, é possível. O inconformismo e a ousadia recomendam-se como imperativo ético, pessoal e cívico. Antes Platão que Prozac…
Em acções de formação contínua de técnicos do campo da intervenção social (assistentes sociais, sociólogos, psicólogos, professores, animadores, entre 2001 e 2004, no continente e nos Açores), dei conta da vontade dos formandos, cerca de 160, de buscar/construir uma ética básica e transversal, que consubstanciámos em Por uma carta ética da intervenção social [Fernandes (relator), 2004: 139-151].
Em conclusão, parafraseando Sócrates e Buda, diria: A vida sem conhecimento (estético, ético e científico) não merece ser vivida, porque se torna vida consentida e não vida com sentido, porque impede o homem de modelar-se a si próprio, como faz o carpinteiro quando modela a madeira ou o frecheiro quando modela as setas. Escutemos, ainda, a palavra de Mia Couto: Vou deixar a porta aberta. Assim, você escuta o mar… (2001) em nome de Um rio chamado tempo. Uma casa chamada terra (2002). Em sonoplastia, a palavra de Natália Correia, apaixonada pelo mar atlântico, em Do Dever de Deslumbrar:
Para que se justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
As pessoas caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
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Pelo Dia Mundial do Assistente Social*
27 de Março de 2007
* Professor decano do ex-Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa. Consultor da Direcção e Presidente da Mesa da Assembleia Geral do Chapitô. Presidente do Conselho Fiscal da APSS.
* Comunicação proferida no Encontro Assistentes Sociais e Compromisso com um Mundo Diferente. Cidadania como Acção face à Pobreza, org. APSS e AIDSS, Auditório da Câmara Municipal de Matosinhos, Porto, 27 de Março de 2007.
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