sexta-feira, março 30, 2007

"Serviço Social Defender Direitos e Fortalecer Movimentos Sociais




Defender direitos e fortalecer os movimentos sociais:


atribuições éticas, políticas e profissionais do assistente social


para radicalizar a democracia




Eleonora Schettini Martins Cunha[1]

Refletir sobre as potencialidades do trabalho do assistente social no sentido de contribuir para o aprofundamento e a extensão da democracia, em especial na sua relação com os movimentos sociais, demanda que, primeiramente, se apresente algumas considerações teórico-conceituais sobre este ator coletivo, tradicional impulsionador de mudanças políticas e sociais.



Os movimentos sociais podem ser considerados um modo específico de ação coletiva, cuja principal estratégia de ação é a mobilização colectiva (daí a denominação “movimento”, que indica a ação do homem na história), o agir comunicativo que expressa demandas e reivindicações, muitas delas de cunho distributivo. São forças sociais coletivas que possibilitam ao indivíduo transformar-se em cidadão e, nesta perspectiva, espaços essencialmente educativos.. Os movimentos sociais também podem ser vislumbrados como expressão de poder da sociedade civil e, por isso, processos político-sociais, que têm origem nas tensões estruturais, sustentados por crenças e valores, identidade e interesses em comum.



Ao se rever a trajetória dos movimentos sociais no Brasil, pode-se identificar nas décadas de 1960 e 1970 a emergência de novos movimentos sociais, não mais restritos ao mundo do trabalho, mas tratando de temas relacionados à vida urbana e à esfera da reprodução social. Esses novos movimentos se intensificaram na década de 1980, tendo como características a afirmação de sua autonomia frente ao Estado, a pluralidade de temas que os mobilizava - cultura política, subjetividade, identidade, cidadania e direitos – e diversidade de identidades que se construíam. Tiveram como importantes mediadores a Igreja católica, intelectuais da esquerda, militantes políticos, dentre outros. Também é desta década os intensos debates acerca das possíveis conseqüências da institucionalização dos movimentos.



A década de 1990 traz consigo a redução do ativismo social e, aqui, é possível se identificar diversos motivos: a normalização democrática e o respectivo engajamento de muitos atores no sistema político (seja via partidos, seja por meio de outros espaços deliberativos, como orçamentos participativos e conselhos de políticas), a exaustão ou o desgaste de alguns atores que não se estabilizaram ou que alcançaram seus objetivos, a desmobilização por cooptação, dentre outros. Também é a década em que se constroem novas articulações entre sociedade civil e poder público, no intuito de se democratizar o Estado, como é o caso de diversos conselhos, comitês, comissões. Muitos movimentos se adotam a estratégia de organização e mobilização em redes, trazendo novas institucionalidades e novas sociabilidades, e, com elas, novos desafios analíticos e de atuação profissional. Há, ainda, a pretensa reforma do Estado e, com ela, a valorização das organizações da sociedade civil e seu chamamento para atuarem como parceiras ou como substitutas do poder público, colocando para alguns movimentos o dilema da Inserção no jogo político.



A década que vivemos tem se apresentado como uma fase de mudanças sociais radicais, muitas delas decorrentes da chamada sociedade de redes que modifica “a operação e os resultados no processo de produção, experiência, poder e cultura”, como Castells identifica. Uma sociedade de riscos, na visão de Beck, em que a condição de incerteza predomina, ainda que haja a persistente busca por segurança. Um tempo em que se intensifica a individualização como valor predominante. Os fenômenos sociais estão cada vez mais complexos, exigindo de quem os estuda e sobre eles intervém a construção de novos saberes e de novas formas de abordagem. Apresentam-se novos espaços para a política e, como afirma Melucci, “o núcleo central dos conflitos contemporâneos está [...] na produção e na reapropriação do significado [e] ocorre mediante a politização de temas referentes a questões que afetam o indivíduo no seu cotidiano e que pouco tem a ver com o sistema político institucionalizado”.



Quanto aos movimentos sociais, Lavalle considera que há uma “ocultação artificial” dos mesmos nas análises, com ênfase em novos fenômenos que surgiram na década anterior, como as organizações da sociedade civil, as redes, as novas formas de expressão e de solução de conflitos, as instituições da democracia participativa e da democracia deliberativa.
Aqueles que ainda se debruçam sobre este importante fenômeno – os movimentos sociais contemporâneos – consideram que há uma renovação de linguagem, de hábitos, de culturas como resistência à lógica dominante. Os principais conteúdos dos movimentos sociais não se restringem às contradições de classe, apresentando outros antagonismos sociais relacionados, por exemplo, à diferença cultural e identitária, trazendo novos temas, politizando valores, mudando a percepção do que é problema político. Nessa perspectiva, os estudos têm identificados temas transversais, como a igualdade na diversidade (inclusão social em sociedades de múltiplas exclusões; da tolerância à aceitação da diversidade); cidadania, direito e participação democrática (direitos humanos indivisíveis; recuperação da dignidade; relação entre cultura, política e ética; relação entre classe, raça, gênero e respectivas discriminações; capital social, empoderamento e responsabilidade social; ação cidadã para decisão em políticas sociais); redes (democratização da informação e controle da mídia; formas de articulação; inclusão digital; organização de redes e empoderamento de membros; o “local” articulado ao “global”); democracia.



Há, ainda, o papel das chamadas “articuladoras”, um novo actor, institucionalizado, que agrega e coordena a ação e os esforços de outros atores (conjunto de entidades membros), formando “redes de redes”, que têm a articulação como tendência, como é o caso da ABONG, por exemplo.
Este é o estágio do debate atual acerca de movimentos sociais. E o que se pode refletir acerca da democracia? Como traduzir a sua radicalização?



A modernidade trouxe consigo promessas de emancipação social - liberdade, igualdade, solidariedade, paz – que mobilizaram as lutas políticas deste período. A democracia incorpora essas promessas. Primeiramente, no século XIX, como ideal revolucionário. Já no século XX, toma lugar central no campo político, havendo uma disputa intensa entre a desejabilidade da democracia e as condições estruturais para concretizá-la (capitalismo X socialismo), sendo que num dado momento assume-se a possibilidade redistributiva da democracia, traduzida na social-democracia como alternativa à democracia liberal.



Os ideais de liberdade têm como princípio básico a liberdade individual, garantida pelos direitos civis. Esses tiveram avanços significativos na sociedade brasileira, em algumas áreas, mas persistem condições de discriminação, que precisam ser alteradas.
A idéia de igualdade tem como princípio básico que todos os cidadãos têm igual condição de participar das decisões vinculantes, que governarão a sociedade. O sufrágio universal é, sem dúvida, um grande avanço para uma sociedade que, até há poucas dezenas de anos, restringia o voto àqueles detentores de riqueza. No entanto, desigualdades sociais e econômicas persistentes produzem desigualdade política e a relativa exclusão de minorias, pobres, classe dos que vivem do trabalho, da influência na discussão e na decisão políticas. Aqui, apresenta-se o risco de que esses grupos, identificando a pouca ou nenhuma influência política que possam ter, tornem-se apáticos, recusando-se a se engajarem em ações coletivas e, com isso, despertando pouco interesse em seus representantes, gerando um círculo vicioso que aumenta a exclusão. A participação política, aqui, apresenta-se como variável dependente de fatores socioculturais – as desigualdades alimentam/realimentam os problemas na qualidade da participação.



A solidariedade tem como princípio básico a justiça social, ou seja, a participação na riqueza coletiva, por meio do acesso à educação, ao trabalho, à saúde, à aposentadoria. E aqui está o grande déficit de nossa democracia. Como radicalizá-la? Boaventura de Souza Santos considera que este é um tempo de avanços (tecnológicos, principalmente) e de “inquietantes regressões” (vulnerabilidades, desigualdades, conflitos bélicos). Coloca-se, portanto, um paradoxo: há condições técnicas para o cumprimento das promessas da modernidade, mas elas estão cada vez mais distantes. “Radicalizar a democracia” significaria, portanto, assegurar, ampliar e aprofundar as condições de liberdade, igualdade e solidariedade; enfim, fazer cumprir as promessas da modernidade.
Para o assistente social, essa radicalização é perfeitamente condizente com o projeto ético-político que informa sua ação profissional, basta recordar alguns dos princípios fundamentais que orientam esta ação:
· Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais;
· Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo;
· Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos das classes trabalhadoras;
· Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida;
· Posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática;
· Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças;
· Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante aprimoramento intelectual;
· Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero;
· Articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores.

Há, portanto, uma inegável correlação entre os princípios que regem a profissão, as finalidades dos movimentos sociais e a pretensão de estender e aprofundar a democracia. Nesta direção, cabe ao assistente sociai:
- Melhor compreender esses fenômenos sociais, com os quais lida cotidinamente (atitudes e intencionalidades práticas e subjetivas, como eles se constituem, origem e construção de sua identidade, projetos políticos e sociais, limites/potencialidades).
- Apoiar e participar das lutas pela conquista de novos direitos de cidadania ou pela efetivação de direitos já conquistados e por regimes e práticas democráticas mais amplas na sociedade (ampliação de espaços e de pessoas na efetiva partilha de poder e de recursos socialmente produzidos) – Art. 12, Código de Ética do Assistente Social.
- Promover – onde estiver:


1. metodologias e dinâmicas mais inclusivas, que reduzam a distribuição desigual dos recursos econômicos, sociais e políticos;


2. processos que legitimem as decisões coletivas e estimulem o respeito mútuo (reconhecimento do outro e da legitimidade do conflito);


3. o potencial educativo da participação, respeitando a autonomia dos movimentos e organizações (Art. 13, Código de Ética do Assistente Social) – ser mediador de conhecimentos e informações que estimulem os valores democráticos e republicanos (contribuir no desenvolvimento do espírito público para as questões públicas), a capacidade propositiva aliada à capacidade reivindicatória;


4. a publicização e legitimação de direitos para os excluídos da cidadania.


- Cuidar para que sejam reduzidos ou eliminados riscos inerentes à relação entre sociedade civil e Estado: cooptação e perda de autonomia, abordagens mais técnicas e menos políticas, relações não igualitárias, subordinação a necessidades e propósitos dos governos ou de interesses econômicos. Esses riscos, muitas vezes, derivam de condições desfavoráveis quanto à informação, a recursos e ao desrespeito ao outro, o que faz com que razões morais cedam ao poder político.


Coloca-se, assim, um grande desafio para todos nós: desenvolver ou estimular ações coletivas ou a participação política para a decisão de questões públicas em uma sociedade que estimula valores individualistas, soluções maximizadoras dos interesses pessoais e não coletivos.
[1] Assistente social/UFRJ, mestre em Ciência Política/UFMG, doutorando em Política/UFMG.CRESS -




in Encontro Descentralizado da Região Sudeste / 2005
Hotel Grandarrell – Belo Horizonte
05 de agosto de 2005.

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