Crianças em Risco e Responsabilidade Cidadã
Conferencia do Dr. Jorge Cabral
no Exercito de Salvação
Bom Dia! Agradeço ao Exército da Salvação o convite formulado. Parabéns pelos 25 anos. Espero que não se esqueçam de mim quando comemorarem os 50! Nessa altura para falar dos idosos.
Vim para aprender, para o que confio nos meus ilustres companheiros de Mesa.
Todos os dias ao lermos os jornais deparamos com dramáticas notícias sobre crianças mortas, maltratadas, abandonadas. Indignamo-nos, comentando ou discutindo as culpas. Segurança Social, Comissões, Tribunais, a Lei. Então e nós, cidadãos? Quando iremos assumir a nossa responsabilidade social? Quando iremos admitir que as causas profundas desta guerra contra os vulneráveis radicam na Sociedade que edificámos. Dos fortes, dos jovens, dos incluídos, contra os fracos, os velhos e os excluídos, remetidos aos guetos do sofrimento pelo nosso egoísmo militante.
O problema das crianças-vítimas só pode ser atenuado se e quando encarado numa perspectiva societária, que considere e respeite a criança enquanto sujeito de Direito, e não como acéfalo objecto de protecção, como a própria e incorrecta denominação de Menor indicia. Citando o grande pedagogo João Santos, que escreveu – “Uma criança de cinco anos sabe tudo da vida, sabe o essencial, sabe amar, sabe falar, sabe retribuir, sabe trocar, sabe dar e receber afecto”, também considero como uma tarefa fundamental, a consciencialização da comunidade para os direitos da criança enquanto Pessoa, na sua Dignidade.
Não o fazer representará um retrocesso na nossa evolução, como Homens e Mulheres Livres, comprometendo o futuro que todos queremos mais Justo e Solidário.
Apontam-se números aterradores. 100, 120, 150 mil crianças em risco, em Portugal. Limam-se as consequências, e não se combatem as causas!
A criança estorvo, a criança empecilho, a criança bibelot, a criança bode expiatório da frustração, do fracasso ou do medo, a criança sofredora e indefesa, continuará a existir para nossa vergonha, neste nosso tempo contraditório, no qual se uniformizaram comportamentos, mas simultaneamente se agigantaram as desigualdades entre nações e entre as Pessoas.
Todos vocês conhecem a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Ora, logo no seu artigo 1º, se diz constituir seu objecto, a Promoção dos Direitos da Criança. Promover significa Fomentar, Difundir, Propagar, e implica a mobilização de todos, porque nos devemos considerar aplicadores da Lei, segundo o espírito subjacente à mesma, cujo Mérito depende da sua interiorização comunitária. Trata-se de uma Lei aceitável quando interpretada sem preconceitos, nem viços burocráticos.
Elenca o art. 3º, a título meramente exemplificativo, algumas situações de crianças em perigo, pese embora se continue a falar de crianças em risco, noções diferentes que mereceriam uma distinção legal. O risco antecede o perigo, e a vitimização concretiza este, razão porque prefiro falar de crianças-vitimas.
Assim sendo parece-me que o sentido preventivo, ínsito no princípio da intervenção precoce, se refere à não repetição do acto ilícito, e não a impedir que uma criança se possa transformar em vítima. Como sucede nos casos de maus-tratos físicos ou abusos sexuais, que podiam ser evitados se tivessem sido detectados os sinais, que apontavam a sua previsibilidade. Obviamente que uma verdadeira e séria intervenção precoce, obriga a políticas sociais integradas e abrangentes, da infância, da família e da parentalidade.
É urgente implementar programas de educação parental, dirigidos, não apenas às mães e pais ignorantes, negligentes ou infractores, mas a toda a população, ensinando que o poder paternal constitui um conjunto de deveres e obrigações, e não o exercício de um direito de propriedade. Aliás, a apropria designação, cuja raiz é a pátria potestas romana, já devia ter sido substituída. O que os Pais devem assumir são responsabilidades parentais.
Continuando na senda dos Princípios de Intervenção contemplados no Diploma, considero necessário, operar uma leitura ampla e corajosa do Princípio da Prevalência da Família. Que toda a criança necessita de uma família é inquestionável. Precisamos todos! De pais, de mães, de tios, de irmãos, de primos, de amigos. Ainda há um ano um idoso italiano conseguiu ser adoptado, e na semana passada quando eu fazia de babysitter, uma menina de 3 anos pediu-me para ser seu avô.
Precisamos de dar e receber Amor, devendo constituir a Família o Espaço Privilegiado da nossa realização afectiva, razão porque só a podemos considerar enquanto tal, se consubstanciar uma Comunidade de Afectos, independentemente da existência ou não de laços biológicos.
Ainda sou do tempo em que se afirmava ser preferível uma má família a uma boa instituição, tese absurda que lamentavelmente ainda tem alguns seguidores… Muitas das situações que infelizmente nos surgem, ilustram não-famílias, onde inexiste a afeição, falece a educação e escasseia o pão, requisitos cumulativos sem os quais, jamais a criança poderá vir a desenvolver-se em harmonia e paz.
E se podemos ajudar com o pão e amparar na educação, será quase impossível obrigar à afeição quem perdeu a capacidade de Amar, desde o percalço dramático da concepção, ao tedioso frete do cuidar do bebé.
Face ao consignado na Lei, lidarão com crianças em perigo, milhares de profissionais das autarquias, da segurança social, dos hospitais, das escolas, das autoridades policiais, das instituições de acolhimento, das comissões de protecção, dos tribunais. Profissionais com as mais diversas competências, professores, médicos e enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, polícias, sociólogos, juristas. Encontrar-se-ão todos estes técnicos preparados?
Constitui um lugar comum dizer que a problemática é multidisciplinar e pluriinstitucional. Como articular, numa cooperação sadia e eficaz, tão diferentes ramos do saber e instituições de tão variada natureza. Diz-me a prática, que a conciliação é difícil.
Esquecendo o velho aforismo, que coloca todos os macacos na mesma árvore, mas cada um em seu galho, os profissionais não foram ensinados a trabalhar em equipa, privilegiam o seu próprio saber ou invadem competências alheias. O juiz que se traveste em psicólogo, o polícia que se julga assistente social, a professora que se pensa juiz, são reais, não pertencem às minhas ficções.
É aqui, salvo o devido respeito, que deve incidir o principal esforço, na Formação. Defender a identidade profissional, mas respeitar o saber do outro. Dialogar em pé de igualdade, mas entender a linguagem diferente. Discordar quando necessário, mas acreditar que todos visam defender o interesse da criança.
Infelizmente, muitas vezes, utilizamos até terminologia diferente, e quanto aos juristas foram formatados para a sacralização do Direito, enquanto Ciência Normativa, só acessível a iniciados. Ora, o Direito é uma ciência social que não pode ignorar a realidade envolvente, nem as pessoas concretas às quais a norma se dirige. E se assim deve acontecer em relação a todo o Direito, esta postura torna-se ainda mais relevante, no que concerne ao denominado Direito de Menores, nas suas duas dimensões, protecção das crianças em perigo e tutela educativa das crianças infractoras, pois prosseguem igual objectivo – o superior interesse da criança, razão porque as duas Leis se devem considerar indissociáveis, tanto mais que na maioria das situações tutelares educativas encontramos estados de grande vulnerabilidade social, a necessitar de urgente protecção.
Porém, nem sempre tal acontece, e no entanto determina o art. 43º da Lei Tutelar Educativa, que “em qualquer fase do processo tutelar educativo o Ministério Público participa às entidades competentes a situação do menor que careça de protecção social e requer a aplicação de medidas de protecção, podendo estas ser decretadas no próprio processo tutelar”.
Na segunda-feira ao fim da tarde recebi um telefonema de uma jornalista que me pedia um comentário à situação que ia noticiar. Embora não goste de me pronunciar sobre processos que não conheço, o caso pareceu-me tão chocante, que não hesitei em apontar as evidentes falhas do sistema. Podem ler a notícia no Correio da Manhã da última Terça-feira - uma miúda de 12 anos fugiu de casa e foi viver com um homem de 24, que foi denunciado por abuso sexual, continuando porém em liberdade e em casa com a miúda. O homem é violento, maltrata a criança, as agressões são diárias, dando cada uma origem a uma queixa. Nada acontece. Entretanto a Menor furta um cartão Multibanco. Instaurado o processo tutelar educativo, é o único que chega ao fim. A menor engravidou, o bebé nasceu morto, dizem que das pancadas sofridas. Espera-se o resultado da autópsia…
Entre o furto do cartão e a necessidade de protecção desta criança em Perigo, o que devia ter merecido a atenção prioritária?
Ontem à noite também me telefonaram. Um pai abusou sexualmente da filha de 12 anos, engravidando-a. Confessou, voltou a casa, deu o consentimento para o aborto. Será que depois deste efectuado, tudo continuará na mesma?
Falámos já da difícil relação entre os diferentes profissionais, a quase inexistente aplicação das medidas de protecção nos processos tutelares educativos, mas mais grave ainda é constatar, a deficiente articulação entre os próprios Tribunais, o Criminal e o de Família e Menores. Urge cumprir a Lei e concatenar ambos numa preocupação comum – a Protecção das Crianças Vítimas.
Mas vai sendo tempo de terminar. E como sempre com uma palavra de Esperança.
Necessário se torna construir um Estado Solidário, acabando de vez com a cultura do turvo, do efémero e do monólogo.
Também fomos crianças. Só podemos protegê-las se as guiarmos para o Amor e para a Felicidade.
Seja-me pois permitido sonhar, e acreditar num Futuro onde a Solidadriedade suplante o egocentrismo, a cultura do Ser substitua a patologia do Ter e a compreensão do outro passe pelo conceito do Nós!
Muito Obrigado.
Jorge Cabral
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