A traição dos
tradutores
Dr. RUI LOPO
A tradução está
enquadrada num sector sócio-profissional complexo e precarizado.
A sociedade
portuguesa actual, entretecida de múltiplas trocas culturais com outros povos,
carece de tradução e de tradutores que permitam dia a dia comunicar com o
mundo, seja na urgência do noticiário em directo de um país distante acometido
por uma revolução ou na longa escala temporal da repercussão literária de um
clássico milenar. Urge assim debater a função social do tradutor, seja este o subcontratado
externo, autor da correspondência comercial de uma multinacional, o legendador
do nosso filme favorito, o anónimo que lavrou em português o manual da
torradeira japonesa que utilizamos ou o académico respeitado que pacientemente terminou
uma versão de um épico escandinavo. Tudo isto deve abrir a nossa sensibilidade
para o direito do público leitor português à cultura, neste caso
entendida como acesso ao conhecimento produzido alhures, como acesso aos
textos canónicos universais, acesso às grandes obras da história da ciência, da
filosofia e da literatura, assim como ao tutorial da varinha mágica, ao manual do
carro ou da máquina indispensável ao nosso trabalho na oficina. As Fundações e
Embaixadas têm promovido a tradução, nos limites da sua acção específica. Mas é
o Estado que o terá de fazer sistematicamente através de programas específicos
de apoio e regulação da tradução literária, técnica e científica. Até porque, a
partir do momento em que os textos são vertidos em português, são
nacionalizados, isto é, apropriados por um povo, passando a fazer parte da sua
própria história. Nos últimos anos é de assinalar o decréscimo da quantidade de
traduções em geral, e de obras de referência, em particular, o que poderia ser
promovido e estimulado através de bolsas de tradução, concursos sempre abertos,
linhas de financiamento que partissem de uma lista e de um júri, e que
viabilizassem a edição e o trabalho do tradutor. Isto poderia ser feito com o
auxílio diplomático das embaixadas dos países ou directamente pelo Estado
português, nos casos em que isso não fosse possível. Tudo isto teria ainda a
vantagem de assegurar a diversidade de contactos culturais do nosso povo, cuja
influência externa quase exclusiva tem sido a anglo-saxónica, obliterando o
belo preceito, da constituição ainda em vigor, da cooperação com todos os povos para a emancipação e o progresso da
humanidade como objectivo da nossa política internacional. A tradução
simultaneamente amplia o património cultural de língua portuguesa e assegura a
comunicação com o outro. Fica o outro mais universal por passar a habitar em
nós e ficamos nós mais amplos por o termos cá dentro.
Outra característica
constatada nos tempos mais recentes consiste na decrescente qualidade das
traduções comerciais das grandes editoras, entregues a trabalhadores sem
formação ou experiência específica, a grupos avulsos de tradução,
sacrificando-se assim a homogeneidade conceptual e estilística que deveria caracterizar
uma obra literária coesa. A supressão dos revisores literários é outra das
causas do abaixamento da qualidade dos produtos editados e mais uma
consequência da precarização de cada vez mais momentos e agentes do processo de
produção do livro.
As questões
práticas essenciais para a resolução do problema passariam por afrontar
problemas sociais que são comuns a outras profissões ou actividades
precarizadas, o que passaria pela negociação social e a contratação efectiva
(com obrigações de formação e especialização) dos trabalhadores de tradução e
revisão. Especificamente nesta área importaria a recolocação na ordem do dia da
discussão sobre a caracterização social do tradutor e da função social da
tradução, distinguindo o tradutor científico, literário e comercial e
procurando dignificar a profissão do tradutor em exclusividade, num momento em
que o Mercado procura que a tradução
seja uma actividade supletiva desempenhada por trabalhadores socialmente
desprotegidos ou a cargo de outra entidade que não a encomendadora do
trabalho literário.
Há que repensar
colectivamente as tabelas de pagamento de referência atendendo à língua de
origem e à especificidade de género do texto a traduzir ou retroverter e em
outros modos de enquadrar e proteger estes trabalhadores, cada vez mais
reduzidos a tarefeiros precários sem qualquer vínculo, vendedores de peças
ocasionais a preços cada vez mais reduzidos, sem auferirem quaisquer direitos
de autor, nem beneficiarem dos lucros que o seu trabalho venha a produzir ao
longo do tempo.
Haveria ainda que apontar para a criação de instrumentos
sociais de enquadramento da luta dos tradutores, dinamizando associações
profissionais de classe de feição mais ou menos sindical. A exploração de que
são alvos aqueles que da tradução se ocupam também depende da sua dispersão e incapacidade
de reivindicação organizada. Na mesma ordem de considerações se deve pensar o
problema da revisão de texto, cada vez mais suprimida do processo editorial,
reduzida à mera correcção automática dos documentos, à revisão feita pelo
próprio autor ou por outros trabalhadores não especializados, ou imposta em
metas impossíveis de cumprir. Tenho espalhado este desafio: reparem com atenção
nas etiquetas e nas embalagens dos produtos importados que consumimos, seja um
pacote de café ou um rótulo disto ou daquilo: Constatem como são confusas
tantas traduções, feitas, no melhor dos casos, por tarefeiros assoberbados e
sem formação ou experiência específica, linguística e literária: mas o mais
comum é que sejam traduções automáticas feitas por computador e sem serem
sequer revistas. As multinacionais poupam em tudo o que seja humano, já se
sabe.
Segundo um adágio clássico, desconfiava-se antanho daquele
que, por traduzir, poder sempre trair o espírito ou a letra do dito ou
escrito original que trasladava… bem se pode agora afirmar que todos os dias
são os tradutores que são traídos na sua dignidade profissional e elementares direitos
sociais.
[Uma versão ligeiramente mais curta deste texto foi
publicada no número 11, de Março de 2016, da revista Esteiro]
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