segunda-feira, maio 10, 2010

Assistente Social e Cooperante Em Bissau Africa


Estimado Professor
(....)
Estou neste momento em Bissaú, onde vim passar alguns dias de descanso. Depois de ter feito a ronda do mes, Ilha das Galinhas, Bolama e por fim Sao Joao, chegar a Bissaú é como chegar a um pais de primeiro mundo. Significa ter acesso a um conjunto de pequenas coisas das quais sinto verdadeiramente falta, ver pessoas diferentes, comer comida que nao seja apenas arroz e peixe, tomar um café e ver movimento.

Ontem, viveu-se um ambiente de grande ansiedade em Bissaú envolto numa atmosfera de falsa calma e sossego. Sai cedo do hotel porque queria ir á Embaixada do Brasil, onde pretendia tratar de alguns assuntos. Fui a pé até Benfica, uma das avenidas principais de Bissaú onde notei que havia uma grande movimentacao de carros, para ser honesta nao dei muita atencao porque uma das caracteristicas das cidades africanas é essa mesma a de uma agitacao constante de carros que partem em todas as direccoes sem qualquer norma de seguranca, pessoas que vao e vem, tudo envolto numa nuvem de calor, fumo e barulho. Quando estava á espera a Diana liga-me um pouco assustada a perguntar onde é que eu estava e sem explicar nada disse simplesmente “vem imediatamente para o Hotel, o primeiro ministro vai ser morto”. Percorri todo o caminho de volta a pé e de repente dei com as ruas cheias de pessoas, uma massa humana avancava contra mim e nao percebi muito bem para onde se dirigiam. Quando cheguei ao centro da cidade vi as lojas a fecharem as portas, as pessoas a correrem, carros das Nacoes Unidas a passarem de um lado para o outro e comecei a ver militares na rua. Quando cheguei ao hotel comecei a ouvir conversas que tinham havido tiros na sede das Nacoes Unidas que fica á frente do hotel depois de um descampado. Percebi que as coisas nao estavam famosas quando o Filipe que trabalha no Marques de Vale Flor me telefona a perguntar se estou em seguranca e para nao sair de casa e quando o Diogo, que já está em Bissaú há 7 anos, nos disse para irmos imediatamente para a pensao da Dona Berta e nao sairmos de lá.

A pensao da Dona Berta fica perto do Hotel onde estamos, as ruas já estavam desertas quando fomos. Ao chegar á pensao nao pude deixar de pensar que estava a viver um filme, uma daquelas realidades que pensamos que nunca vamos viver. A pensao da Dona Berta é um lugar muito especial aqui em Bissaú, existe mesmo uma Dona Berta, uma Cabo Verdiana que trocou Cabo Verde e Lisboa para viver em Bissaú. Uma senhora já com alguma idade que tem um sorriso terno e meigo. Mal entramos abriu-nos um largo sorriso e nos convidou a almocar. Quando entrei na sala, grande e fresca devido a uma varanda enorme com vista para uma larga rua que vai até ao Palácio, a sala é decorada com fotos onde podemos ver a Dona Berta com a Amália Rodrigues, com o Papa Joao Paulo II e o Presidente da República. A sala estava com vários portugueses agarrados aos telemóveis, foi nesse momento que percebemos que as noticias já tinham chegado a Lisboa. Felizmente tive o bom senso de ligar a minha irma a pedir para avisar a minha avó e dizer que estava tudo bem. O rádio ligado onde ouviamos o chefe do Estado Maior a dizer que se houvesse mais manifestacoes nas ruas iam abrir fogo sobre a populacao e a avisar que a partir das 17h havia ordem de recolher obrigatório, quem fosse apanhado nas ruas era morto. O estado de sitio estava dado e nao podiamos fazer nada, apenas esperar, esperar e deixar o pais entregue ao seu povo e ao seu poder.

Como sempre a Embaixada Portuguesa esteve no seu melhor esquecendo-se de avisar algumas ONG’s portuguesas da possibilidade de um Golpe de Estado, isto quando a Embaixada Espanhola antes de isto tudo acontecer ja estava a evacuar para casa todos os expatriados espanhois que estao em Bissaú.

Depois do almoco e de ouvirmos as noticias voltamos para o Hotel onde ficamos até termos ordem de saida, que aconteceu por volta das 19h da noite.

A verdade é que nao sei o que é viver num pais onde de um momento para o outro a minha seguranca, a minha vida pode estar em risco e toda a estabilidade que foi conquistada é posta em causa sem que eu possa ter voz sobre isso. Há um ano atrás o Presidente deste pais foi morto de uma forma violenta, quem nao se lembra das noticias que nos deixaram chocados. Aliás a Guiné – Bissaú a nivel internacional está no mesmo escalao de seguranca que o Iraque, só para verem a ideia que a comunidade Internacional tem deste pais (da qual nao partilho).

A verdade é que nao sabemos o que é ter a nossa vida ameacada. Os militares, sobretudo de etnia Balanta, sao conhecidos pela sua crueldade e capacidade de assinar sem piedade, abrem simplesmente fogo sem olhar a meios.



Hoje quando sai á rua encontrei o Senhor Marcelino um professor do Instituto Gamoes que trabalha em Bolama que mal me viu me disse “Ines temos de voltar para a nossa terra lá estamos em seguranca”, compreenda-se que nossa terra significa Bolama, já sou uma bolamense.

Tivemos de ir a uma rua ao pé da Presidencia e quando tentamos apanhar um taxi achamos estranho que nenhum táxi parou independentemente de estar vazio ou com poucas pessoas. Aqui andar de taxi é como andar num Toca – Toca (Transporte público) paga - se á cabeca e vai enchendo de acordo com o destino final do táxi. Quando desciamos a rua uma rapariga nos explicou que nenhum táxi iria parar porque estamos ao pé da Presidencia, depois disse que o povo estava cansado ao qual respondi que tinha ficado orgulhosa do povo guineense que tinha saido á rua, mostrou que tem voz e coragem ao qual ela respondeu “estamos cansados de ser um dos paises mais pobres do mundo, fartos de nao termos acesso a educacao, fartos de termos doencas, fartos de nao termos escolha, os politicos só querem dinheiro e poder e nós onde ficamos nisto”. Vivem uma vida de inseguranca e instabilidade.

Muitos de voces me perguntaram que trabalho estou a fazer na AMI. Pois bem o meu trabalho é fazer um reconhecimento/mapeamento da regiao sanitária de Bolama. Concretamente é conhecer o estado da educacao, saúde e condicoes de vida de todas as comunidades onde AMI trabalha. Eu percorro as comunidades, falo com as pessoas e apercebo-me que as pessoas nao tem escolha. A sua vida centra-se numa luta constante pela sobrevivencia que se pode traduzir pela luta diária de ter comida no prato nem que seja uma mao cheia de arroz e pela própria vida. Isto muda completamente o modo de viver e perceber a vida. A nós brancos, europeus faz-nos confusao como eles vivem a morte, mas o que dizer sobre isto quando uma mulher nos apresenta um boletim de vacinas dos filhos e numa das colunas o número de filhos mortos pode ser uma proporcao de 5 filhos vivos para 3 mortos?

As vezes estas coisas deixam-me pensativas e ainda mais quando o meu trabalho cria expectativas nas pessoas, eles sabem que o objectivo deste trabalho é conhecer a realidade para podermos elaborar mais projectos de intervencao comunitária, por isso muitas pessoas vem ter comigo a pedir ajuda. E acreditem que me parte o coracao quando vejo pessoas com capacidades e competencias que podiam ser desenvolvidas e nao sao porque simplesmente nao há escolha.

A par destes acontecimentos há momentos mágicos e pessoas que fazem a diferenca. Há algo de mágico nesta terra, as suas pessoas apesar do descontentamento, da miséria há sempre um prato de arroz que me é servido mesmo que haja pouco, há sempre uma crianca que sabe o meu nome e corre para mim quando me ve na rua, há sempre um sorriso que é oferecido com ternura, há sempre um bebe que nasce com boa saúde.

Neste mes tenho diversificado o meu trabalho o que tem sido bom. Fiz umas accoes de formacao aos jovens e participei no programa de rádio que foi uma verdadeira cena do “Gato Fedorento” ao vivo e a cores. Demorei cerca de 3 dias para conseguir ter as condicoes favoráveis para a realizacao do programa depois de muita negociacao e uma grande dose de paciencia. Dei formacao ás matronas (parteiras tradicionais) e adorei. Há mulheres lindas nesta terra. Mulheres de sorrisos ternos, de fé forte e corajosas. Numa dessas formacoes conheci a Tia Cady que é uma mulher que nos passa uma serenidade e calma. Uma mulher de 74 anos que ainda ajuda as mulheres da comunidade a terem filhos, a sua experiencia, a sua sabedoria deixaram-me encantada.

Conheci a Teresa, a responsável pela Horta de Cassucai, uma das curandeiras mais conhecidas de Bolama que recebe o espirito do Iran. O Iran é uma identidade que tanto pode ser bom ou mau que faz trabalhos para as pessoas e fala uma lingua que poucos conhecem. A Teresa convidou-me para ir a uma cerimonia, estou ansiosa por ir ;)

Recentemente um dos meus passatempos preferidos tem sido ir ao Futebol. Vou com o Sérgio e o Bruno (enfermeiro e médico) e confesso que nunca me diverti tanto a ver futebol como aqui. Ao pé do Mercado de Cajú, o “grande” mercado de Bolama existe uma sala que tem antena e apanha alguns canais de televisao. Sempre que há jogos do Benfica a sala enche-se de homens (sou literalmente a única mulher que vai ver jogos de futebol, nao é de admirar que já seja uma pessoa famosa entre os benfiquistas), é um delirio. Imaginem uma sala meia escura com duas televisoes, cheia de pessoas o que inevitávelmente se traduz num calor insuportável, rádios sintonizados no jogo porque os relatos na televisao sao em frances e a par disso há todo um comentar dos jogos na sala. Voces nao imaginam o histerismo que é cada vez que o benfica marca um colo, é LINDO.

Assim me despeco na esperanca que esta calma que se vive hoje nao seja apenas uma camada de verniz pronta a estalar a qualque momento, mas sim que haja um esforco de todos para a reconstrucao de um novo pais, ele merece isso.


Peco desculpa pelos erros, o meu computador é ingles e nao tem correccao em portugues e nem acentos.

Obrigada,

Um abraco

Ines Ribeiro

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