domingo, maio 03, 2009

Lepra o Fim Da Maldição de uma doença estigmatizada

Fim da maldição
por Ricardo Fabrino Mendonça e Hilário Figueiredo

Justiça, ainda que tardia. Uma medida provisória, assinada no dia 24 de maio pelo presidente da República, garantiu pensão vitalícia, no valor de R$ 750 mensais, a todos os portadores de hanseníase mantidos em regime de internamento compulsório até 1986. Mais do que uma forma de ressarcimento, a decisão representou o reconhecimento público, por parte do governo, de que aquele internamento foi injusto e desnecessário, já que a cura da enfermidade é conhecida desde os anos 1940. A decisão de indenizar os hansenianos traz à tona a história de uma doença extremamente estigmatizada, cuja simples menção tem provocado medo, terror e asco ao longo dos séculos.
A temida lepra foi causa de segregação e marginalização em distintos contextos históricos, mas seria equivocado supor que isso se deveu somente à prevenção do contágio ou à necessidade de cuidar dos doentes. Não são essas as principais razões que justificam a expulsão de leprosos de suas comunidades na antiguidade, as incinerações públicas e enterros simbólicos na Idade Média, ou mesmo o internamento em “hospitais”, sem qualquer assistência médica, ao longo do século XIX. Imagens relacionadas à impureza, à sujeira, ao pecado, à doença vista como manifestação da ira divina e como obstáculo ao processo civilizatório e improdutividade se sobrepõem ao mal em si, recobrindo-o de significados que ultrapassam sua dimensão biológica.
Desde os primeiros relatos sobre a doença, no tratado de medicina hindu Susruta Samhita (escrito na Índia por volta de 600 a.C.), ela esteve ligada ao deslize moral, à poluição e a tudo aquilo que deveria ser desprezado. Nem as recentes vitórias da humanidade contra a moléstia foram capazes de eliminar a problemática do preconceito que a envolve. A hanseníase, nome que se tornou oficial no Brasil desde a lei 9.010, de 29 de março 1995, encontra-se hoje praticamente erradicada em todo o mundo. O tratamento gratuito e em regime ambulatorial foi fundamental para a redução do número de casos aos índices almejados pela Organização Mundial de Saúde (OMS): menos de um enfermo em cada dez mil habitantes. Somente seis países não atingiram ainda essa meta: Congo, Madagascar, Moçambique, Nepal, Tanzânia e Brasil (onde, segundo os dados do começo de 2006, o índice é 1,5 / 10.000).
Resta, contudo, o problema do estigma e, ligadas a ele, várias questões que permanecem invisíveis no nosso país: o que fazer com as pessoas que foram internadas compulsoriamente depois que o tratamento da hanseníase passou para o regime ambulatorial? Deve-se devolvê-las à sociedade? Como garantir a reintegração desses indivíduos? Para responder a essas indagações, faz-se necessário compreender a prática do internamento tal como implantado no Brasil.
Embora a segregação dos pacientes de hanseníase acompanhe a própria história da doença, a implantação de um regime de marginalização organizada e bem estruturada é bem mais recente. Data, sobretudo, do início do século XX a política de exclusão em massa dos então denominados morféticos (de morféia, sinônimo de lepra). Antes disso, a exclusão era feita em escala restrita e de modos individualizados: por meio da expulsão de pessoas da comunidade, da reclusão em casebres afastados das vilas ou, mesmo, em pequenos asilos de reduzida capacidade.
Desde a introdução da enfermidade nas Américas pelos colonizadores espanhóis, portugueses, holandeses e franceses, houve preocupação com a moléstia. Na Colônia portuguesa, data de 1697 uma das primeiras formalizações para um local reservado para a cura dos “lázaros” (assim chamados por analogia com o mendigo Lázaro, personagem bíblico). Na ocasião, a Câmara do Rio de Janeiro solicitou providências à Corte de Lisboa. No ano seguinte, o estabelecimento de um lazareto é recomendado, mas a ordem para a construção do asilo só veio no reinado de D. João V, quase meio século depois.
O leprosário foi estruturado no sopé de uma colina na área hoje correspondente ao bairro de São Cristóvão. Na inauguração, em 1741, cerca de 50 hansenianos foram transferidos para o local. Nos estatutos elaborados pela Irmandade da Candelária, que passou a administrar o lazareto na década de 1760, estavam previstos os confiscos de bens dos pacientes, para que a quantia arrecadada fosse direcionada para a manutenção do hospital. Passeios, visitas e divertimentos eram limitados a horários especificados. Aos poucos, outros asilos surgiram. Em São Paulo, providências para a construção de um lazareto tiveram início em 1770. Minas Gerais (1771), Bahia (1787) e Pernambuco (1789) também edificaram seus primeiros asilos.
Apesar da acentuada prevalência das práticas isolacionistas em relação aos doentes, havia profissionais da área que se opunham a esses procedimentos. Ainda no século XIX, no Brasil, há criticas à idéia de transmissibilidade da hanseníase no Brasil: em 1818 o físico-mor do Reino (o principal medico da Corte) negou a possibilidade da transmissão da doença, enquanto a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1833, emitia parecer em que considerava a “lepra” moléstia não-contagiosa. Isso evidencia que a segregação não se fundava sobre o temor do alastramento da enfermidade.
O medo de que a doença viesse a se espalhar só ganhou mais força com a descoberta, em 1873, de seu agente etiológico, feita pelo cientista norueguês Gerhard H. A. Hansen. Contrapondo-se à tese da hereditariedade, o pesquisador comprovou a possibilidade do contágio, agora a partir de novas bases, interpretadas como racionais. Havia ainda a circulação de discursos eugenistas, que propunham uma purificação da raça e a formação de uma sociedade forte, asséptica e progressista. Aspirava-se, em suma, a uma sociedade capaz de se livrar de tudo aquilo que representasse entrave a projetos modernizadores. Os leprosos eram um desses entraves.
A comprovação da contagiosidade da hanseníase forneceu um poderoso argumento para a segregação massiva dos indivíduos por ela acometidos, prática que se apoiava, aliás, sobre os temores da população. Assim, entre as décadas de 1920 e 1930, o Brasil consolidou o modelo de internamento compulsório que levou ao isolamento de doentes em larga escala. Naqueles anos prevaleceu o discurso militarista, ou campanhista, que via a luta contra a enfermidade como uma guerra, e que acabou produzindo uma estrutura de saúde pública marcada pelo arbítrio. Coerentemente com a política getulista, essa postura autorizou a ação de forças policiais, em conjunto com agentes de saúde, para as caçadas e prisões dos enfermos. Em Minas Gerais, por exemplo, o conhecido hansenólogo Orestes Diniz criou, na década de 1930, uma espécie de "turma do choque". Composta por enfermos fortes e bem aparentados, esses integrantes recolhiam abruptamente aqueles que se recussassem ao isolamento nas colônias.
Interessante observar que, quando da internação, muitas pessoas atingidas pela hanseníase tinham seus bens e casas incineradas. As famílias precisavam, muitas vezes, mudar de cidade para fugir de perseguições e ocultar a “humilhação” de ser parente de um “leproso”. Os enfermos, por sua vez, depois de longas viagens em vagões ferroviários lacrados, em canoas rebocadas por embarcações maiores, em carrocerias de caminhão ou mesmo a pé, ainda encontravam forças para inventar um novo nome quando chegavam às colônias, de modo a evitar que os parentes fossem perseguidos.
As colônias eram, geralmente, implantadas em locais de considerável extensão, afastadas dos centros urbanos e podendo abrigar centenas de internos. Nessas instituições, que se espalharam de norte a sul no Brasil, estruturavam-se espécies de cidade-fazenda, onde os pacientes precisavam reconstruir suas vidas, já que a probabilidade de que viessem a sair dali era tida como muito pequena. A chamada zona doente da colônia concentrava os pavilhões coletivos, hospital, prefeitura, casas de casais, igreja, salas de aula, cine-teatro, campo de futebol, delegacia, caixa-beneficente, bares, vendas, plantações, criações e toda a infra-estrutura para que se tornassem municípios autônomos. Esta idéia foi defendida por Belisário Pena, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) no início da década de 1930.
É interessante perceber que, se as metáforas militares foram importantes para a configuração da política de segregação massiva, também o foram dentro das próprias colônias regendo suas práticas e estrutura. Isso fica claro não só na circunscrição da área das colônias com cercas, muros e guardas, mas na disciplina rígida e hierárquica que marcava os asilos. Praticamente todas as facetas da vida desses sujeitos passaram a ser vigiadas e reguladas. O fato de muitas colônias serem geridas pela Igreja Católica deu à estrita vigilância exercida pelos dirigentes sobre os internos a feição de um zelo moral. Assim, reclamações, embriaguez, namoros, pequenos conflitos, furtos e fugas são alguns exemplos de atividades freqüentemente castigadas nos hospitais-colônia. As punições iam de advertências à reclusão, passando pelas transferências para outros asilos. Em caso de prisão, o interno não tinha um julgamento formal. Delegados e guardas eram, na maior parte dos casos, escolhidos entre os próprios pacientes.
Apesar de todas as tentativas de controle e vigilância, seria inadequado restringir os hospitais-colônia à condição das instituições totalizantes de que nos fala o filósofo Michel Foucault (1926-1984). As colônias eram, deve-se lembrar, um espaço de experiência: um lugar em que pessoas viviam, faziam amizades, freqüentavam bares, praticavam esportes, namoravam, assistiam a filmes, cantavam, casavam. A sociedade e a vida que lhes fora retirada por meio da reclusão era, de algum modo, como que reconstituída nas instituições asilares. Nessas micro-cidades, com direito a prefeitura, bailes de carnaval, concursos de beleza, poetas e grupos de teatro, edificava-se uma nova vida em sociedade.
Muitos egressos de hospitais-colônia narram que, paralelamente aos sofrimentos da segregação, vivenciavam, nesses leprosários, a felicidade de sentirem-se como iguais. Tinham a garantia de um lugar para viver, de alimentação e do convívio com seres humanos que não os humilhavam por causa da doença. Em um livro de memórias, Antônio Borges, ex-paciente da colônia de Águas Claras na Bahia, conta que a vida na instituição tinha muitas coisas boas: “água abundante, atendimento médico excelente, alimentação de primeiríssima qualidade, merenda, lanches, higiene, tratamento dentário, oftalmológico, clínicos diversos, enfim é um céu aberto a tanto santo carente de tudo e de todos”. Ações individuais e coletivas como festas, bailes, lazer nas cachoeiras e sessões de filmes compunham uma vasta rede de trocas de experiências de vida. No esporte, encontravam um modo privilegiado de socialização, que permitia até viagens a outras colônias por ocasião de campeonatos e jogos amistosos. O futebol ocupava um lugar privilegiado na vida das colônias.
Se muitos prazeres e atividades lhes eram negados, os pacientes encontravam táticas para burlar as proibições e a vigilância. Namoros às escondidas eram freqüentes, e a obtenção de bebidas alcoólicas revela a existência de contatos com o mundo exterior; contatos esses que as administrações das colônias buscavam impossibilitar. Até mesmo moedas de circulação interna eram criadas de modo a evitar não apenas uma suposta contaminação do dinheiro dos “sadios”, mas também as fugas de pacientes. Estes, no entanto, tinham suas artimanhas para obter o dinheiro oficial. Muitos internos simulavam compras no mundo externo, para que os dirigentes passassem os recursos deles para os supostos vendedores, que, por sua vez, entregar-lhes-iam o capital mediante a cobrança de uma comissão.
Movidos por vontades e escolhas próprias, esses pacientes souberam, enfim, recriar modos de vida a partir de situações adversas. Não queremos certamente negar a carga de sofrimento e de angústia dos pacientes que foram afastados de seus familiares e segregados contra suas vontades, mas propor um olhar sobre as colônias que não as restrinja à imagem do inferno.
A constituição de micro-sociedades no interior dos hospitais-colônia tem um valor que não é apenas simbólico, mas que pode nos ajudar também a compreender as políticas públicas elaboradas em relação às pessoas atingidas pela hanseníase. Nesse sentido, cabe lembrar, aqui, as diversas interpretações a que foi submetido o decreto federal nº 968, de 7 de maio de 1962, que pôs fim, oficialmente, ao internamento compulsório de hansenianos no Brasil. Assinado pelo então primeiro-ministro Tancredo Neves, o documento foi fruto de várias discussões acadêmicas e políticas que propunham a humanização do tratamento da doença. O decreto representou uma esperança de liberdade e de reconquista de direitos, e o que foi visto com maior entusiasmo pela maioria dos internos era a possibilidade de que pais e filhos não fossem mais apartados.
No entanto, o documento foi interpretado de muitas maneiras. Em alguns lugares as práticas segregacionistas mantiveram-se basicamente inalteradas até, pelo menos, o início da década de 1980. Em outros, iniciou-se um processo de reintegração forçada dos doentes à sociedade. O que, a princípio, parecia libertador, passou a ser visto por muitos hansenianos como um processo de dilapidação ou desativação precipitada, que serviria a outros tipos de interesses, não aos dos enfermos.
Reenviando-os à sociedade, segundo a crítica de muitos pacientes, o próprio Estado tentaria se desobrigar dos hansenianos. Grande parte das colônias, extremamente valorizadas com o crescimento dos centros urbanos, antes bastante distantes e, em alguns casos, pelos recursos ambientais de que dispunham, passou a ser alvo da especulação imobiliária. Com isso, teve início uma luta política que discute possíveis modelos para a reintegração dos pacientes de hanseníase. Há, hoje, certo consenso em torno da idéia de que os 33 antigos hospitais-colônia remanescentes não podem ser simplesmente extintos, mesmo porque eles se configuram como novas micro-sociedades criadas pelos internos. Retirá-los à força dessas sociedades seria repetir o erro do internamento compulsório que cortou os laços desses indivíduos com o mundo, obrigando-os a começar a vida da estaca zero.
À frente desse processo está o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), entidade criada em 1981 para lutar pelos direitos das pessoas atingidas pela hanseníase e pela efetiva reinserção delas na sociedade. Inserção esta, argumenta-se, que não pode repetir os equívocos do internamento compulsório ao simplesmente retirar as pessoas da sociedade em que vivem. Complexa, tal reintegração deve atentar para as dimensões econômicas, afetivas, simbólicas e legais do estigma que envolve a hanseníase e das práticas que marcaram sua história. A medida provisória, recém assinada, era uma das reivindicações do movimento. Teve início, com ela o reconhecimento público da dívida simbólica da sociedade brasileira com os hansenianos.
RICARDO FABRINO MENDONÇA É JORNALISTA E DESENVOLVE TESE SOBRE A LUTA POR RECONHECIMENTO DAS PESSOAS ATINGIDAS PELA HANSENÍASE.
HILÁRIO FIGUEIREDO PEREIRA FILHO É HISTORIADOR DO INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN).

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