sábado, abril 12, 2008

Homenagem Postumo a Un Conservador Libertário

charlton heston




Grande actor e homem desassombrado
Defensor de Orson Welles e Sam Peckinpah, foi campeão do conservadorismo libertário
Orson Welles chamou a Charlton Heston "o homem mais simpático de sempre para se trabalhar no mundo dos filmes", e tinha boas razões para dizer bem dele. Se não tivesse sido por Heston e pelo seu star power, que nos anos 50 e 60 punha qualquer produtor em respeitinho e a dizer que "sim" com a cabeça, Welles nunca teria realizado uma das suas obras-primas, A Sede do Mal (1958), porque tinha sido contratado apenas para o interpretar. Mas quando Charlton Heston sugeriu que entraria em "qualquer filme feito por Welles", o estúdio apressou-se a "promover" o autor de O Mundo a Seus Pés a realizador - embora com a condição de só lhe pagar só como actor.E quando, já nos anos 90, A Sede do Mal foi montado da forma que o entretanto falecido Orson Welles desejava, antes de ter sido despedido pela Universal durante a pós-produção e perdido o controlo da fita, Charlton Heston cedeu, do seu arquivo pessoal, o memorando onde o realizador tinha detalhado todo o trabalho de montagem, tal como ele o queria ver feito. Também Sam Peckinpah ficou a dever uma velinha ao actor por causa de Major Dundee (1965), outro filme que acabou por ser mutilado pelo estúdio, à revelia do seu autor. Heston e Peckinpah, famoso pelo seu mau génio e pelo seu alcoolismo crónico, tiveram pegas várias e bravas durante as filmagens. O realizador conseguiu irritar tanto a sua estrela, que Heston chegou a ameaçá-lo com um sabre. "Foi a única vez que fiz uma coisa destas", diria o actor mais tarde. Mesmo assim, quando Sam Peckinpah estava à beira de perder o controlo do filme, foi Charlton Heston que interveio junto do estúdio, a Warner Bros, para tentar minimizar os danos, abdicando do seu salário para que pudessem ser rodadas as necessárias sequências adicionais, e refilmadas outras. A Warner disse que sim, mas acabou por despedir Peckinpah e por não autorizar a rodagem de absolutamente mais nada. E o cheque de Heston nunca foi devolvido. Às vezes, em Hollywood, não compensa ser bom tipo e tentar lutar por aqueles com quem se trabalha e por aquilo que se acredita. Mesmo quando se é uma vedeta e se tem poder.Charlton Heston, que morreu no passado dia cinco, com 84 anos, não foi apenas uma estrela do cinema à moda antiga, de uma Hollywood que hoje é quase só uma recordação; um ícone americano, de uma América hoje em acelerada desintegração e extinção; um actor física, vocal e psicologicamente mente talhado para papéis heróicos, viris ou imponentes em epopeias, filmes de aventuras e produções históricas, mas que também sabia fazer papéis intimistas (ver o discreto e soberbo western Will Penny, de Tom Gries, o filme favorito do actor, de 1968) e clássicos, devido à sua sólida formação teatral, que levou Sir Laurence Olivier, seu admirador, a dizer-lhe que devia fazer menos filmes e mais Shakespeare em palco (ver o seu Júlio César, de Stuart Burge, ao lado de Sir John Gielgud e Jason Robards, em 1970, o António e Cleópatra que também realizou, em 1972, ou a sua impressionante participação no Hamlet de Kenneth Branagh, em 1996); e que ocasionalmente não se importava de personificar vilões (ver Da Terra Nascem os Homens, de William Wyler (1958), num anti- Gregory Peck, o muito saboreado cardeal Richelieu da trilogia Os Três Mosqueteiros, de Richard Lester (1973/74/77), ou ainda, num registo mais matizado, o fabuloso Long John Silver de A Ilha do Tesouro, do seu filho Fraser Heston (1990).Charlton Heston foi isto tudo, e foi também um homem frontal e desassombrado, que nunca teve medo de defender aquilo em que acreditava, no cinema e na vida real. Daí que tenha protegido Orson Welles e conseguido que ele fizesse A Sede do Mal, mesmo que depois tenham ambos sido contrariados pela Universal; e que, apesar do mau carácter e dos desvarios de Sam Peckinpah, o tenha defendido, e tentado preservar a integridade de Major Dundee , abdicando do dinheiro que era legitimamente seu por contrato.Daí que, também, tenha sido um homem de causas. Primeiro, nos seus tempos de liberal apoiante de John F. Kennedy, Lyndon Johnson, do movimentos pelos direitos civis dos negros e de Luther King. Depois, quando, perante a radicalização à esquerda do Partido Democrata nos anos 60 do psicadelismo, da contestação ululante e anarquizante e do Vietname, se transferiu para a direita republicana, juntificando "não fui eu que mudou, foi o Partido Democrata". Charlton Heston tornou-se então num campeão sem papas na língua e num pára-raios do conservadorismo com riscas libertárias. Falou e manifestou-se pelas liberdades, valores e direitos americanos mais antigos e genuínos (incluindo, como presidente da National Rifle Association, o direito à posse de armas garantido pela Segunda Emenda da Constituição dos EUA), e contra o politicamente correcto ("uma tirania com boas maneiras", chamou-lhe), o multiculturalismo, a boçalização dos costumes e da arte, e outros factores de descaracterização e de desintegração da identidade social e cultural americana.
Até ao fim, o homem que interpretou Moisés, o Cid Campeador, Marco António, Ben-Hur, Sherlock Holmes, Andrew Jackson, São João Baptista, o general Gordon e Miguel Ângelo, foi igual a si mesmo. Não é qualquer direitista que tem obituários elogiosos nos muito liberais, muito politicamente correctos Guardian, New York Times e Washington Post.
Eurico de Barros

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