Proposta de Lei do Governo
Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior
Parecer da FENPROF
A FENPROF considera que uma reforma do ensino superior é necessária para a garantia do direito constitucional dos portugueses a um ensino superior de qualidade, que promova o desenvolvimento do país e que esteja ao serviço de todos os portugueses. Defende que o desenvolvimento do ensino superior passa, de forma determinante, pela valorização do exercício profissional docente e de investigação, pela existência de entidades independentes de acreditação e avaliação das instituições do ensino superior, por um efectivo financiamento público, por uma acção social escolar que garanta uma frequência de qualidade e constitua um incentivo ao investimento dos jovens e das famílias no prosseguimento de estudos.
A FENPROF entende, ainda, que a importância e a dimensão social da proposta apresentada pelo governo para Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior deveria implicar o envolvimento do país na tomada de decisões, designadamente da comunidade de ensino superior, tendo a máxima consideração pelas posições das organizações sindicais docentes e não docentes, do CNE, do CRUP, do CCISP, das organizações representativas de estudantes e de funcionários não-docentes, e das instituições do ensino superior.
Nesta linha, a FENPROF considera precipitada a aprovação da proposta de RJIES em Conselho de Ministros, depois de anos de silêncio e de inexistência de propostas concretas, num quadro em que, nos últimos dois anos, não foi criado um ambiente institucional de diálogo e negociação entre governo e organizações sindicais e outras instâncias de representação da comunidade de ensino superior. Essa precipitação é ainda mais evidenciada pelo facto de se pretender substituir de uma vez quatro diplomas: a lei do Regime Jurídico do Desenvolvimento e Qualidade do Ensino Superior, as duas leis de autonomia relativas às instituições públicas universitárias e politécnicas, o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (ESPC).
No que se refere ao Ensino Superior Público, a transformação de universidades, ou de unidades orgânicas destas (escolas ou institutos de investigação), bem como de institutos universitários, em “fundações de regime de direito privado”, (artº 129º), e da radical e, porventura, inconstitucional modificação da estrutura dos órgãos de governo e gestão das instituições e respectivas unidades orgânicas, sobressaem no texto apresentado pelo governo.
1. Quanto à primeira questão, a FENPROF rejeita, inequivocamente, a solução da passagem ao regime de fundações que abriria portas à subjugação do primado do interesse público aos interesses privados da gestão, pois permitiria que os objectivos e as missões das instituições universitárias passassem a ser determinadas pelas necessidades imediatas de grupos económicos e subordinadas a critérios exclusivos de mercado, atendendo a que as instituições passariam a ser governadas por elementos externos – os curadores – representando-se a si próprios ou representando interesses que devem ser considerados mas que não se aceita que venham a assumir o poder de determinar a gestão de instituições públicas. Ao mesmo tempo, trata-se de uma proposta que incentiva à desresponsabilização do Estado e abre portas à privatização de instituições públicas de ensino superior.
As instituições são aliciadas, sem garantias, por esta proposta de lei para esta “solução” a partir da promessa de orçamentos plurianuais (vedados às restantes) e de uma maior flexibilidade de gestão administrativa e financeira. O Governo está, assim, a usar, perversamente, a instabilidade que vem criando nas instituições de ensino superior, com os violentos cortes orçamentais e com as limitações ao uso dos saldos de gerência, para convencer os actuais responsáveis pelas instituições a darem um passo no escuro – abraçarem as fundações. Mas esta “solução”, agora proposta pelo Governo, indicia ser mais um passo no sentido da desresponsabilização do Estado pelo ensino superior público, conclusão reforçada pela ideia, entretanto construída, de que as fundações só se aplicarão a instituições capazes de angariarem verbas próprias de montante elevado.
A FENPROF considera, assim, que a “solução” das fundações poderá conduzir, a breve prazo, a uma ainda maior redução do financiamento do Estado a pretexto de que as instituições estão em condições de se auto-sustentar. Tal abriria caminho à desregulação das condições de contratação, impediria a satisfação das legítimas expectativas de carreira de docentes, investigadores e demais trabalhadores, agravaria as condições de exercício efectivo da autonomia académica e profissional, ao mesmo tempo que promoveria a liberalização da fixação dos montantes de propinas para os 1.º e 2.º ciclos.
De maior perversidade se revestiria ainda a possibilidade, aberta na alínea a) do nº 2 do artº 129º, de passagem a fundação por parte de uma escola, ou de um instituto de investigação, sem que a universidade de que agora faz parte seguisse idêntico caminho. Esta possibilidade ameaçaria estilhaçar o sistema universitário público e separar das universidades os seus domínios disciplinares mais rentáveis, i.e., com capacidade de estabelecer ligações com o tecido empresarial no âmbito da investigação e da inovação, deixando nas universidades quase exclusivamente os sectores das humanidades e das ciências sociais que não se inserem nas prioridades da luta pelos mercados globais.
A FENPROF considera de grande gravidade política o facto de o Governo usar esta pressão inadmissível como forma de quebrar a resistência interna que antevê a este caminho por parte daqueles sectores. Procura, assim, levá-los a aceitar, sob a ameaça de enfraquecimento e para tentarem evitar maiores prejuízos, que as universidades venham a abraçar a “solução” das fundações, sem contudo virem a conseguir dessa forma evitar a marginalização dessas áreas no contexto da universidade/fundação, que estará mais preocupada com a rentabilidade económica do que com o interesse social mais amplo que ao Estado compete assegurar.
A FENPROF rejeita firmemente esta “solução” com recurso a fundações que não se adequa à realidade nacional e até à dominante experiência europeia e que ofende o princípio do interesse público, que desvaloriza o trabalho de sucesso realizado, particularmente depois da reestruturação de 76, projectando-se para além fronteiras, apesar das dificuldades criadas pelos sucessivos governos ao seu desenvolvimento, propondo um modelo de gestão, de dependência exterior.
Quanto à nova estrutura proposta para os órgãos de governo e de gestão das instituições de ensino superior público (que nunca receberam os montantes previstos pelas fórmulas de financiamento aprovadas, nem gastaram acima do orçamentado, tendo, ao invés, sido expropriadas dos saldos de gerência), a FENPROF entende que ela não corresponde às alterações que seria necessário introduzir, tendo em consideração a experiência de gestão adquirida e as necessidades de adequação do modelo de gestão aos desafios de uma sociedade em mudança.
Se é justificável para a FENPROF a redução do excessivo peso da gestão em número de órgãos e em número de membros, bem como o reforço dos mecanismos de responsabilização e de prestação de contas, já não se concorda com:
— a concentração excessiva de poderes no Conselho Geral e nos órgãos unipessoais (reitores das universidades, presidentes dos politécnicos e directores das escolas);
— a excessiva redução do número de membros no Conselho Geral, limitando drasticamente a sua representatividade;
— a não eleição do reitor ou presidente por uma assembleia que assegure uma larga participação da comunidade académica;
— a não obrigatoriedade de existência de um Senado com poderes efectivos na gestão académica.
Para o Governo, o enfraquecimento da capacidade e autonomia de acção que os órgãos de gestão das instituições de ensino superior possuem, que lhes advém de mecanismos de representação e participação das comunidades de ensino superior, é uma prioridade evidente, desrespeitando, por esta via, três princípios elementares da salvaguarda de uma gestão democrática: elegibilidade dos órgãos, representatividade dos corpus, participação da comunidade escolar e científica do ensino superior
Também aqui, como na proposta das fundações, o Governo objectivamente se serve das dificuldades que sucessivos governos criaram à gestão das instituições públicas de ensino superior para justificar publicamente estas medidas, limitadoras do direito e do dever de participação da comunidade académica na gestão democrática, e a concentração de poderes em órgãos unipessoais, quando o actual modelo de gestão, embora susceptível de melhorias, permite que as instituições sejam geridas de forma a assegurar, em geral, elevados padrões de qualidade, num contexto de grande expansão no acesso e de elevados cortes orçamentais geradores de grande incerteza e instabilidade na administração dos recursos.
A FENPROF defende o alargamento do número de membros do Conselho Geral por forma a assegurar:
— uma mais ampla representatividade das unidades orgânicas e da comunidade académica;
— a obrigatoriedade de existência de um Senado com poderes sobre a gestão académica;
— a eleição do reitor ou presidente por um colégio largamente representativo da comunidade académica;
— a eleição do director ou presidente de uma escola por um colégio largamente representativo;
— a ampliação do número de membros da assembleia destinada à revisão dos estatutos das instituições.
As instituições públicas de ensino superior devem, entretanto, passar a fazer parte da administração autónoma do Estado que lhes possibilitará a gestão flexível de que tanto necessitam, tornando desnecessária a figura das fundações para o efeito.
Finalmente, a FENPROF deseja chamar ainda a atenção para o facto de, por muitos defeitos que apresente, o actual modelo de gestão ter permitido também um largo período de sã e profícua convivência académica entre docentes, não-docentes e estudantes, condição indispensável à prossecução das missões do ensino superior.
Este modelo, agora tão criticado, tem permitido a muitas instituições a sua modernização, a sua internacionalização e o aumento da qualidade das suas actividades, apesar das dificuldades porque têm atravessado, provocadas pela acção dos sucessivos governos que não assumiram o ensino superior e a investigação científica como efectivas prioridades.
Do ponto de vista da FENPROF, é preciso fazer evoluir o actual modelo, simplificando-o, tornando-o mais capaz para responder em tempo oportuno às necessidades sociais, não apenas à “economia”, mas às do desenvolvimento sustentável do país em todas as suas dimensões.
Mas, para isso, o capital de participação, de envolvimento e de dedicação da comunidade académica não pode ser desbaratado nem desvalorizado, como sucederia se a actual proposta de lei vingasse tal como está, sob pena de graves prejuízos para o cumprimento da missão do ensino superior e para a sã convivência entre docentes, não-docentes e estudantes, valor inestimável que urge consolidar e não enfraquecer.
2. A FENPROF discorda do aprofundamento da dicotomia do sistema binário, patente na proposta de lei, que tenta configurar um subsector politécnico público subalternizado, com reminiscências do “ensino superior de curta duração” de há 30 anos atrás.
3. A FENPROF considera que, a confirmar-se, é positiva a proposta de um aumento global dos requisitos indispensáveis à garantia de qualidade do ensino superior, quer no sector público, quer no privado, e em particular no âmbito das qualificações e do regime de prestação do serviço dos docentes, embora permaneçam insuficiências graves na proposta. Como se pode justificar, por exemplo, a evidente omissão quanto ao conceito de tempo integral no Ensino Superior Particular e Cooperativo, quando se sabe que há docentes que estão a 100% em três instituições?
A experiência tem, no entanto, demonstrado que uma coisa são as exigências legais e outra, frequentemente muito diferente, é a vontade política para as fazer cumprir. Na realidade, muitas situações de instabilidade e de falta de qualidade que se têm verificado, em especial no ESPC, ter-se-iam evitado se, por parte de sucessivos governos, tivesse sido realizada uma rigorosa fiscalização e tivessem sido tomadas as medidas adequadas em prol da garantia dos pressupostos do interesse público.
Em particular, não têm sido asseguradas condições dignas de contratação e de carreira aos docentes do ESPC, contrariando a declaração da UNESCO (1997) sobre a condição do pessoal docente do ensino superior, aliás, assinada por Portugal, que dispõe sobre as condições necessárias ao exercício efectivo da liberdade académica.
A actual proposta de lei (artº 53º) remete esta função para uma regulamentação colectiva de trabalho que até agora nenhum Governo foi capaz de forçar a entidade patronal do sector a implementar, apesar dos esforços da FENPROF nesse sentido. Na realidade, o processo de negociação de uma proposta de Contrato Colectivo de Trabalho para o ESPC, apresentada pela FENPROF em Maio de 2000, acabou por esbarrar em sede de conciliação no Ministério do Trabalho.
O referido artigo remete, ainda, para o Código de Trabalho, admitindo, contudo, especificidades a serem fixadas por lei especial. É de notar que nunca a legislação regulamentadora da contratação e da carreira no ESPC, exigida pelo anterior Estatuto, foi publicada. Atendendo às reclamações que vêm sendo feitas pela organização representativa das entidades instituidoras, esta perspectiva de lei especial levanta a fundada dúvida sobre se o que se pretende não será, ou protelar a actual situação por atraso na publicação da lei, ou legalizar por essa via os atropelos que vêm sendo realizados nos domínios da contratação de docentes, com vista à eternização e ao agravamento de contratações precárias e ao total arbítrio no domínio das remunerações, e da atribuição de cargas lectivas.
26/06/2007
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