MOVIMENTO NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL
“POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS”
REPÚDIO ÀS MANIFESTAÇÕES CONTRA A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial vem por meio desta manifestar-se para reiterar seu compromisso com a defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
REPÚDIO ÀS MANIFESTAÇÕES CONTRA A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial vem por meio desta manifestar-se para reiterar seu compromisso com a defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Como é de amplo conhecimento, o processo de Reforma Psiquiátrica implantou uma mudança do modelo de tratamento, pois no lugar do isolamento preconiza “o convívio na família e na comunidade”. O acesso da população aos serviços e o respeito a seus direitos e liberdade são garantidos através desta significativa mudança do atendimento público em Saúde Mental, que passou a ser executado tanto em uma série de novos equipamentos assistenciais (CAPS, Residências Terapêuticas, etc) como em outros pré-existentes (ambulatórios, hospitais, etc.) que, no entanto, passaram a operar em conformidade ao novo modelo.
Recentemente, porém, com a implantação do Núcleo Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental, através de uma parceria entre a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, alguns representantes de setores como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Federação Brasileira de Hospitais e os Conselhos de Medicina têm se manifestado publicamente contra a constituição do dito Núcleo e contra a Reforma Psiquiátrica em geral.
Por exemplo, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), Dr. Paulo César Geraldes, na edição do jornal desta entidade, em maio de 2006, afirmou que “a loucura é a maior das tragédias de que um ser humano pode ser vítima” e que esta realidade “está bem distante da mentira antimanicomial”. Diante da loucura acaba “a possibilidade de usufruir do mundo todas as nuances, a capacidade de expandir ao máximo suas potencialidades como indivíduo e como ser pensante e criativo”, encerrar-se-ia no psicótico “a capacidade de se autodeterminar, de ser livre, de expressar de modo completo e cabal a sua vontade e de guiar os seus fatos conforme os seus desejos”. Conclui que “aqueles que a elogiam e a engrandecem (a loucura) ou são ingênuos, ou são insensíveis ou estúpidos ou, então, dela querem se aproveitar de algum modo, caso do chamado Movimento Antimanicomial”.
Pensamento como este fundamenta a defesa da manutenção dos manicômios, na medida em que só se vislumbra a desesperança, a exclusão, a invisibilidade dentro de instituições psiquiátricas super lotadas, a desqualificação e a inabilidade para o convívio social, a anulação da subjetividade.
Esta tentativa de restringir a loucura ao campo da medicina está presente em matéria no jornal O Globo (Caderno Opinião, página 07, 20/07/2006), em que o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Dr. Josimar França, na crítica ao processo de “desospitalização” implantado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, afirma que a “psiquiatria precisa de internações e de atendimento em centros especializados, tanto como a ortopedia e a cardiologia”. Identificando Reforma Psiquiátrica com reforma da especialidade psiquiatria, afirma que “quem precisa de reforma é o modelo assistencial, não os médicos”. Denuncia que o Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde “ignorou anos de pesquisa científica que atestam a internação como procedimento adequado. Em muitos casos, a única medida indicada”. Diz ainda que a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde “não considerou que a psiquiatria, como qualquer outra especialidade médica, utiliza procedimentos com diversos graus de complexidade, desde uma simples consulta até intervenções cirúrgicas e internação” (lembramos aqui que o Movimento Antimanicomial vem denunciando o retorno das psicocirurgias, antigamente denominadas lobotomias). Atribui ainda a uma lavagem cerebral implementada pelo Movimento Antimanicomial, a resistência de familiares a internarem seus membros em crise. E por fim afirma ainda que a classe psiquiátrica, representada pela ABP, defende a necessidade urgente da promoção de campanha de esclarecimento público.
Já em um debate apresentado na televisão brasileira (Espaço Aberto, Globo News, 21:30h, 04/08/2006) entre o Presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília e o Coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, aquele denuncia que os Centros de Atenção Psicossocial/CAPS (um dos equipamentos da rede de atenção à saúde mental), contemplaram só o social e o psicológico e excluíram os médicos, o que não é verdade, numa clara demonstração de desconhecimento do modelo de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico implantado através da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Todas estas críticas à Reforma Psiquiátrica nos parecem oportunistas e suspeitas, pois foi a própria prática de asilamento das pessoas com transtorno mental que nos últimos dois séculos construiu o grande preconceito social em torno da loucura e impôs a internação como única saída possível para o transtorno mental. E é o Movimento Antimanicomial, inicialmente identificado como Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (com participação de psiquiatras), que nos últimos trinta anos tem lutado pela desconstrução desse preconceito junto à sociedade e como importante ator na implantação da Reforma Psiquiátrica, conferindo às pessoas com este sofrimento o resgate de sua cidadania e a defesa de seus direitos humanos. Ao criticar a Reforma Psiquiátrica esta parcela da classe médica parece querer evitar o questionamento de suas práticas abusivas e de sua hegemonia no campo da saúde, e em última análise do seu poderio econômico.
Nós, usuários, familiares, profissionais (inclusive psiquiatras) e estudantes do campo da saúde mental, identificados com os princípios do Movimento Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira e do Sistema Único de Saúde nos colocamos em posição diametralmente oposta a esta visão da loucura e da assistência que lhe é prestada, e defendemos o emprego de métodos diversificados para lidar com a pessoa com sofrimento mental, para além do arsenal médico.
Entendemos o sofrimento mental como fenômeno complexo indissociável da pessoa que o vivencia, buscamos abarcar e tratar integralmente nos novos serviços de saúde mental as dimensões física, psicológica, familiar, social, econômica, cultural, de direitos, cidadania, autonomia e inclusão dessa problemática, através de uma atuação multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial, em equipamentos heterogêneos, com a participação ativa de usuários e familiares na construção das práticas de assistência e reabilitação. Essas práticas devem, como princípio, não cercear a liberdade dos indivíduos de ir e vir e sua participação na trama social, estimulando ao máximo o protagonismo e as potencialidades de cada um, dentro dos limites particulares e com respeito às diferenças entre os seres humanos, diferença esta a ser valorizada como fonte de riqueza e pluralidade e não desvalor e desabilidade, a ser afastada e ‘tratada’ em ‘centros especializados’ longe dos olhos da sociedade.
E ainda, diante da conjuntura relatada acima, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, manifesta sua estranheza quanto a esta mobilização de entidades médicas, de psiquiatria e de hospitais psiquiátricos neste momento pré-eleitoral. Repudiamos a forma destrutiva e irresponsável com que vêm se referindo à Reforma Psiquiátrica Brasileira que os coloca na posição de vítimas no processo de transformação da assistência psiquiátrica em implantação no Brasil desde a década de noventa.
Esta posição, além de demonstrar um grande equívoco, desconsidera a existência de pensamentos divergentes entre os psiquiatras no país. As denúncias que estes profissionais insistem em fazer, tira a responsabilidade histórica deles próprios na existência desta realidade que está sendo transformada no campo da assistência em saúde mental. Nós, do Movimento Antimanicomial, não podemos aceitar tal postura em silêncio.
Parece-nos que estão claros os interesses políticos e de luta pelo poder de tais entidades, em detrimento de uma discussão comprometida com uma mudança efetiva na assistência em saúde mental e identificada com reconhecimento de direitos de cidadania e humanos das pessoas com sofrimento mental.
Supomos que o incômodo maior que querem reverter é o fim da hegemonia anterior do hospital psiquiátrico e a perda da exclusividade da categoria médica neste contexto. O debate está restrito aos interesses de uma corporação profissional em detrimento de um processo de discussão mais amplo. Contra esta postura, nós, do Movimento da Luta Antimanicomial, mantemos a esperança na Reforma Psiquiátrica e no SUS, a partir da visão crítica sobre suas práticas políticas e cobrando dos gestores públicos sua responsabilidade para com elas.
É importante lembrar que a maioria dos hospitais psiquiátricos ainda em funcionamento no país (aproximadamente 50.000 leitos) não são próprios do SUS, mas a ele conveniados e geradores de renda. Sua substituição por serviços abertos abala economicamente os grupos que os administram, sejam entidades lucrativas ou filantrópicas. Ainda assim, mais da metade do dinheiro público gasto com saúde mental no país é direcionado a financiar tais instituições, que mantêm como prática corrente o aviltamento dos direitos humanos daqueles a que se propõe prestar assistência – fato este verificável por todo o território nacional e que salta aos olhos de quem adentra qualquer hospital psiquiátrico.
Do outro lado da balança, temos a crescente participação de diversos atores sociais, incluindo os ditos loucos, nos espaços de controle social, capacitando-se através de cursos de formação política, de seminários e no cotidiano das lutas em associações de usuários e familiares de saúde mental, conselhos municipais, estaduais, nacional de saúde. Encontramos uma rede de serviços aberta, ampla e heterogênea, descentralizada, em fase de implantação e com poucos recursos, que vêm crescendo paulatinamente, pois depende da reversão de verbas do hospital psiquiátrico para sua efetivação.
Temos a clareza política e ideológica que há muito que se feito. A rede substitutiva de assistência em saúde mental ainda é pequena e frágil. O campo de formação profissional na área da saúde aos poucos revê o processo de aprendizado dos futuros profissionais e começa timidamente a incluir na sua grade curricular as discussões que envolvem as políticas públicas, especificamente o SUS.
O que de fato defendemos hoje, é a criação de redes que funcionem dentro de uma lógica verdadeiramente antimanicomial, ou seja, que cuidem, amparem, interliguem, ponham em comunicação. Ou seja, redes que não reduzam a pessoa ao objeto doença, não isolam, não excluam, ao contrário ponham em movimento as invenções aí dadas, avançando, principalmente nos campos social, jurídico e dos direitos humanos.
Exigimos nossa participação e de tantos outros movimentos e setores sociais, voltados para o trabalho de base, do dia-a-dia, no debate e interferência permanente ligados à elaboração, gestão e promoção de políticas públicas que possam fazer avançar a Reforma Sanitária no país e, dentro dela, a Reforma Psiquiátrica brasileira, visto que a história de transformações na saúde mental, assim, como vários processos da vida de modo geral, não são fatos dados, mas construídos no cotidiano das lutas de muitos.
Agosto de 2006
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