Sexismo e Racismo cordial
Zelma Madeira
Especial para O POVO
De acordo com a professora Zelma Madeira, as relações de gênero e as raciais convergem para fazer das mulheres negras o grupo de menor poder na sociedade brasileira. Desemprego, violência sexual e doméstica seriam algumas das conseqüências do debate cruzado de gênero e etnicidade
De acordo com a professora Zelma Madeira, as relações de gênero e as raciais convergem para fazer das mulheres negras o grupo de menor poder na sociedade brasileira. Desemprego, violência sexual e doméstica seriam algumas das conseqüências do debate cruzado de gênero e etnicidade
No Brasil convivemos com o paradigma que informou a "democracia racial", de explicitação das etnias como socialmente reconhecidas, no entanto isto deu base às teses explicativas da identidade nacional através de uma miscigenação "harmônica" das três raças. Perdurou um discurso ideológico de ocultamento do racismo, escondendo processos de dominação e discriminação contra a população negra. Afirmou-se de modo genérico e sem questionamento essa harmonia racial empurrando para o plano pessoal os possíveis conflitos.
Neste sentido cabe algumas reflexões sobre as mulheres negras. A conjugação de sexismo e racismo têm se constituído no grande impedimento para o desenvolvimento de suas potencialidades. Desde que foram retiradas da África, passaram por todo tipo de violência, foram estupradas pelos senhores, humilhada pelas sinhás, tiveram seus corpos usados como incubadoras para a geração de outros escravizados, impedidas de criar seus filhos, acusadas de encarnação de um erotismo exacerbado. Verificamos que a lógica da sociedade patriarcal e escravista conseguiu ser mais perversa com as mulheres negras.
As mulheres negras conquistavam espaços públicos em meio a tensas relações de poder, diferindo radicalmente das mulheres brancas pertencentes às classes dominantes, que viviam enclausuradas em seus lares sob as ordens masculinas de maridos, pais ou irmãos. Estes aspectos conferem as mulheres negras um lugar especifico. Elas utilizaram o espaço urbano no ato de vender bens materiais como comidas e outros produtos e conseguiam financeiramente manter suas famílias.
No mercado também foram mediadoras de bens simbólicos e exerceram poder no campo religioso, assumindo o sacerdócio como ialorixás, mães-de-santo nos candomblés, tambor de mina e outras religiões de matriz africana, atuaram com devoção nas irmandades religiosas. Assumiram o papel de zeladoras das tradições africanas: estabelecendo laços de solidariedade, criando e fortalecendo as comunidades de terreiros.
A trajetória das mulheres negras foi demarcada de lutas e embates, contudo ainda hoje as relações de gênero e raciais convergem para fazer destas um grupo em desvantagem e com menos poder na sociedade, retraduzidas nos elevados índices desemprego, escolaridade insuficiente, violência sexual, doméstica e psicológica. Estas mulheres têm convivido com certas imposições sociais que, independente da época, possuem um traço comum: mantê-las em silêncio. A mulher negra cearense depara-se com dificuldades para configurar seu perfil feminino e isso têm sua razão de ser.
O racismo no Ceará ganha uma especificidade, prolifera o discurso da ausência de negros e negras, de que foi um dos primeiros estados a abolir a escravatura. Isto leva ao engendramento de uma perspectiva da invisibilidade desta população. Porém, há sim uma experiência social construída historicamente pela população negra no Ceará, as marcas ficaram presentes no seu engajamento no mundo do trabalho, nas práticas culturais e religiosas e nas lutas contra a discriminação e o preconceito. Em Fortaleza essa população negra tem convivido em meio às péssimas condições socioeconômicas, residindo na periferia desta metrópole. Essas condições adversas têm fortes repercussões nos processos de construção da sua identidade étnico-racial.
As mulheres negras são infelizmente identificadas por rótulos de incapacidade, por aspectos de negatividade quanto a sua estética, pesa a discriminação racial nos processos de seleção e alocação de mão-de-obra feminina, sobressai o quesito "boa aparência", focado num modelo de beleza etnocentrado. Acresce também a forma de atendimento destas mulheres nas instituições públicas, em muitos casos não são tratadas pelo nome, mas por expressões preconceituosas como "negona", "macaca" conformando o racismo institucional. No âmbito das relações amorosas, do padrão de matrimônio sobressai entre as negras as uniões estáveis, casam em geral mais tarde. Vale advertir que as relações amorosas e afetivas são construídas social e culturalmente. As mulheres brancas competem com vantagens com as mulheres negras.
Os homens negros têm preferido às mulheres brancas, e muitos fazem guiados pelo processo de branqueamento, crentes que conseguiram aceitação, status na hierarquia social. Este fato revela a forma como o racismo opera entre nós, distanciando-nos do sentido de pertença e identidade racial.
Diante do exposto precisamos acionar mecanismo e recursos que empodere os processos de autoconhecimento e autogestão das mulheres negras. No campo das instituições públicas, vale combater a discriminação de gênero e étnico-racial, não se equivocando com o sexismo "carinhoso" e o racismo cordial, que permanecem na exaltação da mulata como símbolo de nacionalidade e coisificação das negras para o trabalho desqualificado e objeto sexual. Vale apostar em ações que desvelem os processos discriminatórios e socializar as possibilidades que tem as mulheres negras impactando sua auto-estima.
*Zelma Madeira é professora do Departamento de Serviço Social da Uece, vice-coordenadora do Labvida/Uece. Mestra e doutoranda em Sociologia pela UFC, com pesquisa na área de religião e cultura de matriz africana.
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