Dia Europeu dos Assistentes Sociais
2005-11-08
2005-11-08
Intervenção do Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social
na Jornada Nacional do Dia Europeu dos Assistentes Sociais
Portugal percorreu um longo caminho do ponto de vista da modernização, económica e social, nas últimas décadas. É verdade que este percurso nem sempre foi linear, que houve altos e baixos que tiveram sobretudo a ver com fases mais difíceis dos ciclos económicos. Mas não restam dúvidas que a evolução de longo prazo foi muito significativa em quase todos os domínios sociais.
O crescimento económico, a democratização e a europeização da sociedade portuguesa desempenharam um papel central para tornar esta evolução possível. O mesmo se pode dizer da actuação do Estado, em particular através das políticas públicas de índole social. E, naturalmente, não podemos deixar também de referir o papel da sociedade civil e das pessoas que fizeram da sua profissão o trabalho social junto das pessoas.
Certo é que a face do país que temos hoje apresenta, felizmente, poucas semelhanças com a realidade de há trinta ou quarenta anos atrás, e a mudança foi para melhor. Podia citar aqui dezenas de indicadores para sustentar esta informação, mas creio que talvez valha a pena explorar algumas dimensões que me parecem críticas no presente.
Porque não é menos verdade que subsistem problemas sociais significativos no país. E se olhar para trás nos permite verificar o muito que foi feito e o muito que melhoraram a qualidade e as condições de vida dos nossos cidadãos, não nos deve levar a uma contemplação auto-satisfeita dos progressos realizados, desvalorizando os focos problemáticos do presente.
Permitam-me que foque aqui um domínio em que ainda há muito por fazer: a pobreza, nas suas mais variadas formas, causas e consequências.
Por exemplo, a persistência, por mais tempo do que seria expectável, de focos de pobreza material (i.e. insuficiência e dificuldade de acesso a recursos materiais), pobreza essa associada muitas vezes aos défices de desenvolvimento que ainda subsistem e que se revela muitas vezes quase imune a estímulos de tipo monetário. Soma-se a esta face mais “tradicional” da pobreza todo um conjunto de fenómenos que não deixam de ser preocupantes a este nível:
- a «nova» pobreza urbana, gerada quer nos processos de suburbanização das grandes cidades quer no envelhecimento e empobrecimento dos centros históricos;
- os «riscos» associados, por exemplo, à toxicodependência, ou a outras formas de exclusão, como as pessoas em situação de marginalidade, reclusos e ex-reclusos, ou pessoas mergulhadas na desprotecção que define as mais variadas formas de economia subterrânea;
- as situações decorrentes ao quadro de estagnação económica dos últimos três anos, como o aumento do número e percentagem de desempregados de longa e muito longa duração, e as dificuldades acrescidas, por exemplo dos jovens e dos trabalhadores mais idosos, para aceder ao mercado de emprego;
- ou ainda riscos em parte também novos como os problemas associados não à imigração mas à integração dos imigrantes e seus descendentes em Portugal como sociedade de acolhimento;
- e isto, naturalmente, sem esquecer grupos tradicionalmente com fortes problemas de exclusão social como as pessoas com deficiência.
É inegável que temos hoje, para várias destas dimensões, recursos materiais e financeiros, aparelhos institucionais, medidas de política, capacidade no terreno e capital ao nível dos recursos humanos muito mais avançados do que há ainda pouco tempo atrás. Mas a verdade é que, não sendo felizmente o mesmo que no passado, há ainda problemas de pobreza para resolver. E esses problemas têm uma face, cuja diversidade reflecte também a complexidade da sua resolução. A pobreza em Portugal uma pobreza concentrada sobretudo naqueles que têm posições mais desfavoráveis face ao mercado de trabalho ou menor autonomia nesse e noutros âmbitos da cidadania: as mulheres, os idosos, as crianças. Mas há também muitos trabalhadores pobres (pessoas que trabalham mas não conseguem por essa via garantir recursos suficientes para níveis de bem estar acima dos níveis de pobreza). E há pobreza nas cidades, nas periferias das cidades, no mundo rural.
A face da pobreza em Portugal tem, pois, um perfil multifacetado. Situação que deve, também, ser somada à diversidade dos perfis, das causas, e das perspectivas de re-inclusão das pessoas que se encontram nestas situações, tornando o problema da pobreza extremamente complexo no plano da intervenção política e social.
É por isso que o Rendimento Mínimo Garantido (hoje RSI) foi pensado numa lógica que acolhia contratos de inserção que podiam ser muito diversos em termos substantivos. É por isso que há hoje um aparelho cada vez mais completo de protecção às crianças e jovens. É por isso que há programas específicos direccionados quer a grupos como os idosos ou os DLD, quer a regiões do país com dificuldades acrescidas. E é por isso, também, que vamos a curto prazo lançar um programa especialmente destinado aos idosos pobres.
Mas eu gostaria de chamar a atenção para um ponto. Todo o quadro que acabo de descrever do ponto de vista do perfil da pobreza em Portugal deve ainda ser lido contra duas contradições de fundo da situação portuguesa que não devemos esquecer.
Em primeiro lugar, Portugal tem uma taxa de pobreza relativa que é, ao nível dos rendimentos primários, i.e. antes das transferências sociais, inferior à média europeia. Mas essa mesma taxa é, depois das transferências sociais, a maior dos países da União.
Ora, se o desnível das despesas com protecção social face à média europeia, existindo, é pouco mais do que ligeiro (e por isso não é suficiente para explicar esta inversão de posições), isto significa necessariamente que as transferências sociais em Portugal são menos eficazes do que nos outros países.
Ou seja, com quase tantos recursos conseguem-se muito menos resultados. Isto não pode deixar de nos preocupar, e de constituir um objectivo prioritário das políticas sociais no nosso país.
Em segundo lugar, Portugal é um dos países com rendimentos médios mais baixos mas é também o país em que há maiores desigualdades na distribuição de rendimentos. O rendimento dos 20% mais ricos é 6 vezes superior ao rendimento dos 20% mais pobres. Especialmente num contexto de baixos salários médios, é fácil perceber que temos um uma forte dispersão nos extremos, mais vincados que noutros países, da escala de rendimentos, gerando problemas sociais muito sérios – em particular, naturalmente, no lado da escala que corresponde ao extremo dos rendimentos mais baixos.
Ou seja, a pobreza não é apenas muito diversa, ou muito multifacetada. É também uma pobreza cujas raízes têm muito a ver com as condições estruturais da economia e da sociedade do nosso país.
A este respeito, penso que é cada vez mais claro que a resposta estratégica para estas dificuldades estruturais tem uma direcção de fundo de que não nos podemos afastar: uma ruptura na política tradicional de mínimos sociais, rompendo com a dicotomia tradicional entre universalidade e diferenciação e procurando uma combinação criativa e virtuosa de ambas as opções. É fundamental conseguir combinar estas duas filosofias, muitas vezes apresentadas como opostas, ou incompatíveis, sob pena de criarmos, ou piorarmos, problemas de um dos lados enquanto acudimos só aos que são levantados do outro.
Ou seja, por um lado não podemos deixar de ter respostas universais, que garantam padrões de bem estar aceitáveis ao maior número possível de cidadãos.
(Esta é uma dimensão extremamente importante numa óptica transversal. E não apenas para a qualidade de vida das pessoas mas acima de tudo, e numa lógica de sustentabilidade, para a economia e para a competividade do país. Ao contrário do que muitas vezes se diz, a protecção social não é inimiga da competitividade; é, sim, amiga da economia porque gera emprego, liberta recursos para o consumo, cria condições para a participação equilibrada no mercado de trabalho e previne e resolve problemas sociais que o Estado teria sempre, se não fossem objecto de uma cobertura universal de riscos, de resolver de outro modo)
Mas por outro lado, e em face dos focos específicos de problemas que temos e da sua concentração em determinados grupos, não podemos também deixar de ter políticas de diferenciação positiva. Dar mais a quem mais precisa, num quadro como o português, é mais do que uma opção ideológica; é um imperativo político.
O que já é, pelo contrário, uma opção de cariz ideológico, e discutível, é apostar na diferenciação desistindo, pura e simplesmente, da universalidade, ou reduzindo-a ainda mais. A verdade é que a universalidade da protecção tem permitido, justamente, limitar a extensão e a severidade dos problemas que temos, impedindo que eles cheguem a mais pessoas. Se comprometermos a universalidade, ou a transformarmos num simulacro sem qualquer efeito prático, sobretudo quando ela já existe muitas vezes a níveis baixos de protecção, só estaremos a criar novas fracturas sociais e a abrir novas frentes de problemas que nos vão custar caro – ao Estado e a todos – no futuro.
Este não é, pois, o caminho correcto. O caminho certo, e justo, é o da combinação entre universalidade e selectividade nas intervenções, diferenciando positivamente os problemas e as pessoas para os quais isso faz sentido. Mas sem desproteger a frente «universal» das políticas sociais, porque essa é a base a partir da qual se pode partir para outras lógicas de intervenção.
Como é fácil de perceber, este caminho não é fácil de percorrer. Mas a resolução dos problemas sociais, e em particular a sua dimensão estrutural nunca o é, por definição. Sabemo-lo há muito, e essa é só mais uma razão para prosseguir empenhadamente este rumo estratégico que é o mais adequado à situação portuguesa.
O que está em causa é, pois, de uma enorme exigência a todos os níveis.
Começando pelo Estado, passando pelas famílias, pela sociedade civil e pelo sector lucrativo. E a dimensão destes desafios tem também uma componente que envolve profissionais do sector, os trabalhadores da área social. Permitam-me que conclua referindo alguns aspectos que dizem directamente respeito aos assistentes sociais e a outros profissionais que trabalham nestas áreas tão sensíveis.
As mudanças verificadas ao longo dos últimos anos na sociedade portuguesa e, em particular, ao nível dos perfis e modalidades de intervenção no campo das políticas sociais têm tido como consequência uma mudança, também, no perfil profissional dos assistentes sociais. E, mais concretamente, nas exigências que lhes são colocadas, todos os dias, no exercício das suas funções – cada vez mais alargadas, mais multifacetadas, mais orientadas para novas componentes do trabalho social e para competências profissionais que no passado não lhes eram exigidas.
Creio que não é de esperar que esta tendência de mudança venha a cessar. Ou sequer que conheça um abrandamento significativo. E muito menos que se assista a um retrocesso – que aliás seria de todo indesejável para os profissionais do sector, do ponto de vista da sua valorização e da sua capacidade técnica – às vertentes tradicionais, de tipo mais assistencial, do trabalho social. Pelo contrário, creio que o que está em curso é uma mudança estrutural do perfil profissional dos trabalhadores sociais, com especial ênfase naqueles que possuem maior grau de especialização nestas matérias, como é o caso dos assistentes sociais.
Cada vez mais, este perfil incluirá, para além das competências específicas do apoio social clássico (que não perderam a sua importância, aliás), dimensões inovadoras como:
- conhecimento aprofundado na área das prestações sociais, de modo a (a) acompanhar o desenvolvimento do nosso modelo social e a complexificação da arquitectura deste que lhe está associada, e (b) a garantir assim a necessária ligação com o universo mais amplo da protecção dos beneficiários no plano da acessibilidade aos direitos e numa lógica holística de intervenção sobre as pessoas;
- competências especializadas na área da gestão de organizações, de projectos e de equipas, dando assim capacidade técnica e humana no plano do próprio suporte institucional das políticas sociais;
- novas competências interpessoais e de proximidade, face aos desenvolvimentos das lógicas de intervenção nas políticas sociais e dos próprios problemas sociais com os quais é necessário lidar. Nomeadamente, refiro-me a competências em áreas como a comunicação e a mediação, cuja importância não cessa de se aprofundar.
São apenas exemplos, mas creio que dão uma ideia daquela que é a direcção de fundo da evolução do perfil profissional dos assistentes sociais. Creio que são, de resto, evoluções que já são observáveis no terreno e que muitos de vós já terão experimentado. E que, além do mais, são muito positivas porque vão claramente no sentido da valorização da própria profissão, cujo papel e importância é bem conhecido e tem sido objecto de reconhecimento ao longo dos tempos.
Resta-me desejar uma jornada de trabalhos frutuosa, para que as conclusões que daqui saiam possam desde já ser incorporadas no quotidiano da vossa prática. Em resposta aos desafios que temos, já hoje, entre mãos.
Sem comentários:
Enviar um comentário